21.6.21

Voar


"A envergadura das asas 
por vezes tapava-lhe o céu
Misturavam-se as palavras 
com os caminhos esculpidos por entre as nuvens
projectando símbolos oferecidos pela mão de Deus
pó silencioso que só os utopianos conhecem 
como sextante navegador 
dos quadrantes da sua solidão"
 
CRV©

8.3.20

Be A Lady They Said


Be a lady they said. Your skirt is too short. Your shirt is too low. Your pants are too tight. Don’t show so much skin. Don’t show your thighs. Don’t show your breasts. Don’t show your midriff. Don’t show your cleavage. Don’t show your underwear. Don’t show your shoulders. Cover up. Leave something to the imagination. Dress modestly. Don’t be a temptress. Men can’t control themselves. Men have needs. You look frumpy. Loosen up. Show some skin. Look sexy. Look hot. Don’t be so provocative. You’re asking for it. Wear black. Wear heels. You’re too dressed up. You’re too dressed down. Don’t wear those sweatpants; you look like you’ve let yourself go.

Be a lady they said. Don’t be too fat. Don’t be too thin. Don’t be too large. Don’t be too small. Eat up. Slim down. Stop eating so much. Don’t eat too fast. Order a salad. Don’t eat carbs. Skip dessert. You need to lose weight. Fit into that dress. Go on a diet. Watch what you eat. Eat celery. Chew gum. Drink lots of water. You have to fit into those jeans. God, you look like a skeleton. Why don’t you just eat? You look emaciated. You look sick. Eat a burger. Men like women with some meat on their bones. Be small. Be light. Be little. Be petite. Be feminine. Be a size zero. Be a double zero. Be nothing. Be less than nothing.

Be a lady they said. Remove your body hair. Shave your legs. Shave your armpits. Shave your bikini line. Wax your face. Wax your arms. Wax your eyebrows. Get rid of your mustache. Bleach this. Bleach that. Lighten your skin. Tan your skin. Eradicate your scars. Cover your stretch marks. Tighten your abs. Plump your lips. Botox your wrinkles. Lift your face. Tuck your tummy. Thin your thighs. Tone your calves. Perk up your boobs. Look natural. Be yourself. Be genuine. Be confident. You’re trying too hard. You look overdone. Men don’t like girls who try too hard.

Be a lady they said. Wear makeup. Prime your face. Conceal your blemishes. Contour your nose. Highlight your cheekbones. Line your lids. Fill in your brows. Lengthen your lashes. Color your lips. Powder, blush, bronze, highlight. Your hair is too short. Your hair is too long. Your ends are split. Highlight your hair. Your roots are showing. Dye your hair. Not blue, that looks unnatural. You’re going grey. You look so old. Look young. Look youthful. Look ageless. Don’t get old. Women don’t get old. Old is ugly. Men don’t like ugly.

Be a lady they said. Save yourself. Be pure. Be virginal. Don’t talk about sex. Don’t flirt. Don’t be a skank. Don’t be a whore. Don’t sleep around. Don’t lose your dignity. Don’t have sex with too many men. Don’t give yourself away. Men don’t like sluts. Don’t be a prude. Don’t be so up tight. Have a little fun. Smile more. Pleasure men. Be experienced. Be sexual. Be innocent. Be dirty. Be virginal. Be sexy. Be the cool girl. Don’t be like the other girls.

Be a lady they said. Don’t talk too loud. Don’t talk too much. Don’t take up space. Don’t sit like that. Don’t stand like that. Don’t be intimidating. Why are you so miserable? Don’t be a bitch. Don’t be so bossy. Don’t be assertive. Don’t overact. Don’t be so emotional. Don’t cry. Don’t yell. Don’t swear. Be passive. Be obedient. Endure the pain. Be pleasing. Don’t complain. Let him down easy. Boost his ego. Make him fall for you. Men want what they can’t have. Don’t give yourself away. Make him work for it. Men love the chase. Fold his clothes. Cook his dinner. Keep him happy. That’s a woman’s job. You’ll make a good wife some day. Take his last name. You hyphenated your name? Crazy feminist. Give him children. You don’t want children? You will some day. You’ll change your mind.

Be a lady they said. Don’t get raped. Protect yourself. Don’t drink too much. Don’t walk alone. Don’t go out too late. Don’t dress like that. Don’t show too much. Don’t get drunk. Don’t leave your drink. Have a buddy. Walk where it is well lit. Stay in the safe neighborhoods. Tell someone where you’re going. Bring pepper spray. Buy a rape whistle. Hold your keys like a weapon. Take a self-defense course. Check your trunk. Lock your doors. Don’t go out alone. Don’t make eye contact. Don’t bat your eyelashes. Don’t look easy. Don’t attract attention. Don’t work late. Don’t crack dirty jokes. Don’t smile at strangers. Don’t go out at night. Don’t trust anyone. Don’t say yes. Don’t say no.

Just “be a lady” they said.
Words: Camille Rainville

Be a Lady They Said from Paul McLean on Vimeo.
Narrator: Cynthia Nixon
Director: Paul McLean paul-mclean.com
Music: Louis Souyave @ OPM.london
Post: Mini Content mini-content.com
Producer: Claire Rothstein claire-rothstein.com 

1.9.19

Pieter Bruegel no Kunsthistorisches Museum em Viena (3)

Torre Babel - 1563 - Bruegel - Vienna
“Naquele tempo a Humanidade falava uma única língua e todos usavam as mesmas palavras. Mas a certa altura, puseram-se a caminho, saindo do oriente, e chegaram a uma planície da Mesopotâmia onde se fixaram. Disseram então uns para os outros: “Vamos fazer tijolos e cozê-los no forno! Os tijolos serviam-lhes de pedra e o betume de argamassa. depois disseram:
“Agora vamos construir uma cidade com uma grande torre que chegue até ao céu, pois temos de ficar famosos antes que tenhamos que nos dispersar pelo mundo”.

“Eles são um só povo e falam todos a mesma língua. Agora puseram-se a fazer isto e depois ninguém mais os poderá impedir de fazerem aquilo que projectaram fazer. Vou lá abaixo confundir as línguas, de modo que eles não se entendam uns aos outros”. E desta forma, o SENHOR, dispersou-os por todo o mundo e eles desistiram de construir a cidade. Por isso, aquela cidade ficou a chamar-se BABEL, porque foi lá que Deus confundiu as línguas da Humanidade e foi lá que os dispersou por todo o mundo”.
Génesis - 11.8
Torre Babel - 1563 - Bruegel - Rotterdam
A sala onde se encontravam as duas Torres de Babel projectadas por Brugel, deixava antever as dissertações sobre uma sociedade representada no Genesis onde se preconizava a alegoria da convergência humana, expressa numa única língua e num só povo, empenhados numa sociedade elevada ao reino dos céus.
A ausência propositada de luz ofuscava as obras por detrás das cabeças dos mirones que aguardavam pacientemente a sua vez para admirar dois dos quadros mais famosos do mundo, sobre os quais incidiam dois projectores estrategicamente posicionados. Na subida em espiral, as metáforas do descontentamento dos homens ficavam entregues à nossa imaginação enquanto esperavámos pela oportunidade de tecer as nossas considerações sobre os homenzinhos que na escalada se debatiam com construções, procissões de fé e funerais, numa toma infinita de actividades que precludiam o futuro da humanidade.

Pacientemente, aguardei que todos à minha frente observassem e considerassem sobre o simbolismo das representações. Há, na arquitectura em arco da torre, um manifesto paralelismo ao estilo vespasiano do Coliseu de Roma, onde os espectáculos públicos, de teatro e morte, retratavam as dicotomias inevitáveis da sociedade, sem comiserações ou probidade, reflexo do lado mais negro da espécie humana.

"Deus vult”, A vontade de Deus não teve lugar nas alegorias das Torres de Babel.
"Deus vult homo atuem sic quiz” porque o homem assim o quiz.

Ao projecto inicial comum sucedeu-se a castração da língua primária comutando-a num linguajar vernáculo próprio de cada região. A disseminação populacional gerou partições, contradições, oposições, fronteiras, ganância, a superioridade abjecta orweliana de uns sobre os outros, a castração da esperança e o sobrevir monolinguístico das ditaduras, comum a todas as formas de aperfeiçoamento da incoerência humana.
O tempo de Brugel foi um período enxertado do Genesis do século 16. As partições sociais, a implantação do luteranismo e a divulgação de impressões gráficas, que sustentavam uma filosofia de esclarecimento do povo, promoveram novas dicotomias agigantando os contrastes e a percepção das injustiças e das diferenças criadas por aqueles que, protegidos pelo sistema, obscurantizavam, intencionalmente, as relações com os outros.

Essa religião de privação de oportunidades encontra-se espelhada nos arcos que ascendem em espiral desproporcionada, com fundações debilitadas rumo ao céu, num conjunto de forças, onde a vaidade, o orgulho desmesurado e a intolerância encontram a sua causa primeva, junto com a soberba e a ganância.
Uma última nota para os desconstrutores do futuro. Um conjunto de figuras minúsculas, desenvolvida de acordo com a pintura miniaturística da época, retrata uma infinidade de tarefas, ad eternum repetidas, que configuram um esforço de Sísifo, fútil e inútil , onde a opressão e a subserviência dos trabalhadores é manifesta contrastando com a auto-confiança e a prepotência dos intimidadores que exercem a gestão e a inspecção das obras.

Na sala anterior, mais tranquila e com espaço para a observação atempada e minuciosa, uma vitrine cativou a minha atenção. Lá dentro, um livro, de dimensões consideráveis, reporta o inventário do Kunsthistorisches Museum, referente ao ano de 1720. Numa das páginas, aberta ao observador, é visível um quadro com uma terceira Torre de Babel, executada por Bruguel, cujo paradeiro se perdeu no tempo, e que contrasta, em fundo e forma, com as restantes duas, de cores ocres e escuras, expostas na sala contígua. Esta Torre de Babel, de fundo branco, com uma Torre colada ao céu, reporta as mesmas futilidades e inseguranças que promoveram a desunião da humanidade, fazendo-o, contudo, num tom mais eficiente, acertivo e seguramente mais transparente.
CRV© Torre Babel - 1563 - Bruegel - Paradeiro desconhecido

26.11.18

Pieter Bruegel no Kunsthistorisches Museum em Viena (2)

Há poucos relatos sobre a personalidade de Bruguel mas através dos seus quadros a leitura é perfeita. Acutilante, sarcástico, os seus desenhos constituem uma verdadeira sátira social numa época marcada por uma tricotomia que seccionava radicalmente as três classes sociais. Bruguel retratou com inspiração boschiniana a ganância e a soberba do clero, a sobranceira e a luxúria da nobreza, a miséria e as inquietações da alma do povo. Admirado pela riqueza do detalhe, Karel van Mander, contemporâneo e biografo de vários artistas flamengos refere-se a Bruegel como um "exemplo a seguir para qualquer artista que tenha ambições nas artes da pintura" descrevendo-o como "um homem tranquilo, observador, sábio e discreto, conhecido pela sua simplicidade e pelo gosto que tinha em misturar-se com a população, em festas populares, casamentos e outras celebrações, com o intuito de se inspirar para as suas criações".
Pieter Coecke van der Aelstem & Mayken Verhulst

Bruguel iniciou o seu percurso como aprendiz no atelier do pintor Pieter Coecke van der Aelstem, em Antuérpia. Durante 5 anos (1545-50) desenvolveu as técnicas generalistas mas foi com a pintora Mayken Verhulst, mulher de Coecke, que viria a aprender a Ars Nova miniaturista de detalhe realista, famosa nos finais dos século 15 na escola de Bruges e que Bruguel viria a utilizar exaustivamente nas suas obras mais conhecidas.
Com a morte do mestre, Bruegel viajou para Itália (1552) onde permaneceu dois anos a aprofundar os estudos renascentistas, mas seria o regresso a Antuérpia, e os desenhos que efectuou na travessia dos Alpes, que o tornariam percursor do retrato paisagista, como tema central de uma obra, ao contrário do que até aí era habitual na arte sacra ou na pintura retratista, onde a técnica de enquadramento paisagístico de fundo era meramente de composição decorativa.

De regresso a Antuérpia, Bruguel integrou uma elite intelectual urbana. Um cenário de artistas, escritores e editores que se agregavam em torno da evolução da imprensa. Hieronymus Cock era um conhecido editor dos primórdios da indústria tipográfica. Ansiava por novidades que fugissem às iluminárias dos livros canónicos ou às leituras de contestação luterana com intuitos cisionários da fé cristã. Nas “paisagens alpinas com vales profundos e pinheiros que tocavam o céu”, viu a oportunidade do seu negócio, pois não se tratava apenas de divulgar o trabalho de um artista, mas sim o de tirar proveitos, alargando o espectro de clientes não só à Santa Igreja ou a resistência luterana mas a toda uma população iletrada que através das publicações em massa deixava de ser mero espectador de feira para actuar na condenação e divulgação de práticas sociais menos honestas.

Alpine Landscape - Bruegel
 Certo na sua intuição, Hieronymus Cock tornou-se, em pouco tempo, um dos editores mais ricos de Antuérpia. A parceria viria a revelar-se fundamental na divulgação dos trabalhos de Bruegel, evoluindo, aos poucos, das 12 gravuras iniciais, para a sátira social, com preenchimento exaustivo de figuras grotescas, onde era notória a influência de Hieronimus Bosch (1450-1516), o grande percursor do surrealismo do século XX. ”

"Big Fish Eat Small Fish” é uma das verdades universais representada com uma complexidade de figuras que interagem e das quais o observador retirará as suas próprias ilações adequando o cenário ao contexto histórico, da nova burguesia à degradação das condições de vida da população, da Inquisição ao Luteranismo.

(continua)

5.11.18

Pieter Bruegel no Kunsthistorisches Museum em Viena (1)


Antonio Canova - Teseu vence o Minotauro (1781-3)
Subi as escadas a correr. Passei pela escultura perfeita de Canova. Fotografei a cara de Teseu, os olhos, os cabelos ondulados, a expressão vitoriosa, os músculos do braço que empunha a espada mágica, as mãos do Minotauro agarradas ao chão, a traseira de cavalo, os cascos, os tendões de pedra e as linhas dos músculos que se contorciam esmagados. Era o fim do labirinto de Creta.
Mais acima, o outro lanço de escadas levava à exposição de Bruegel.

Promovida pelo Kunsthistorisches Museum de Viena, a mostra de 87 trabalhos do pintor, divididos entre desenhos e pinturas, corresponde a 1/3 das obras que sobreviveram até aos nossos dias. Nas comemorações dos 450 anos do desaparecimento de Pieter Bruegel (1525/30-1569), a oportunidade era única. Reuniram-se pinturas e gravuras espalhadas por museus e colecções particulares, que poucas vezes foram apresentadas ao público, com destaque particular para os dois quadros representativos da Torre de Babel, pela primeira vez expostos lado a lado, e para uma série de quadros e gravuras de influência boscheniana (Bosch 1450-1516) que constituem uma das fases de maior destaque na obra do pintor. 

A exposição, organizada pelo percurso cronológico de Bruegel, evidencia as características paisagísticas dos primeiros tempos, a miniaturização transversal aos pintores flamengos da época, os temas sacros inseridos em contextos satíricos e alegóricos, a critica social, marcada pela imagem proverbial identificadora dos pecados e das virtudes do homem, enquanto ser individual e mortal.
É impossível dissociar a obra de Pieter Bruegel do contexto social, politico e religioso da época em que viveu. A censura da Igreja católica, a Inquisição e os autos de Fé, a destruição pública de livros e objectos de arte que atentavam à moral, a Reforma Luterana, o Concílio de Trento, o domínio espanhol dos Habsburgo, a subversão dos valores sociais, a desproporção dos privilégios eclesiásticos, o desprezo dos princípios da fé em prol dos interesses instalados e, sem dúvida, a imprensa, em expansão numa Europa tipográfica, que funcionava como um elemento difusor de um humanismo necessário, de um reformismo fraccionário, de uma sátira social difundida através de gravuras, cujo impacto se fazia sentir na mensagem repercutida junto de uma população maioritariamente iletrada. 
Para além das perturbações sociais esta época foi ainda marcada pela pequena “Idade do Gelo”. 
Caracterizada por um arrefecimento generalizado das temperaturas, com invernos rigorosos e diminuição drástica da produção agrícola as condições climatéricas geraram a escassez de alimentos, a pobreza e a mendicidade, a deslocação rural para os meios urbanos, a revolta contra os bens eclesiásticos, com assalto e destruição de mosteiros e igrejas onde o conforto do clero contrastava com as precárias condições da população carenciada. Paralelamente, vivia-se uma revolução naval e comercial com expansão dos territórios holandeses e a elevação de Antuérpia a capital económica do norte. (continua)
Pieter Bruegel - Hunters in the Snow - 1565

29.9.18

A Última Samurai (2)

The Great Wave of Kanagawa - Hokusai - c. 1829–32
Quando vi o mar em Kanagawa, lembrei-me do quadro de Hokusai, "A Grande Onda” (1830) e percebi toda a resiliência de um povo transportada na força dessa onda, a relação com o xintoísmo e a veneração dos elementos naturais quando estes se transformam em credo de aceitação e conformismo em relação aos imprevistos da vida contra os quais é impossível lutar. O xintoísmo, fundado nas tradições místicas pré-históricas japoneses, preconiza uma agregação de princípios espirituais politeístas que se manifestam em cultos de veneração aos elementos originais da natureza. A água, o vento, o fogo, o mar, as tempestades, o sol, e a lua fazem parte do grupo de consagrações essenciais do culto, assim como as montanhas e os lagos sagrados, os dragões, leões, raposas e divindades superiores que assumem posses desafiadoras sempre que se procura dar corpo a esses espíritos nos múltiplos templos espalhados pelo Japão. 
Onna-bugeisha com naginata
A "Grande Onda" tem essa imprevisibilidade dos elementos naturais com os quais os japoneses aprenderam a coabitar e a resignar-se. Executada no final do período “Edo” (1603–1868), descobri, nesta época, os traços que mais me fascinaram da história do Japão, com a tomada do poder dos Samurais, (1600), a defesa das fronteiras marítimas e o estancar dos ataques destabilizadores dos chineses e mongóis. 
O período de paz que se viveu, promoveu as condições ideais para um desenvolvimento económico e cultural, com alfabetização da população e proliferação de escolas e academias para filhos de samurais. Foi a época do Shogunato, com extensos domínios territoriais (han), senhores feudais (daimyo) que habitavam castelos com um número proeminente de servos, camponeses e exércitos privados. Com uma estratificação social rígida a sociedade da época promovia uma secundarização do papel da mulher condicionando a sua autonomia ao poder discricionário do cônjuge ou da figura paternal do clã. Por isso, as histórias que chegam aos nossos dias de inconformismo ou de rebeldia são aquelas que nos dão uma imagem da vontade de ruptura com o conservadorismo instalado e, sem dúvida, constituem movimentos embrionários percursores de equiparação social de direitos e oportunidades entre ambos os géneros.
Nakano Takeko (1847-1868)

Em 1847, os registos relatam o nascimento da filha mais velha de um nobre samurai de Aizu, chamada Nakano Takeko. Desde pequena revelou aptidões extraordinárias nas artes marciais tendo sido adoptada por um professor da escola de samurais - Daisuke Akaoka - que a introduziu na formação de elite recebendo aulas de literatura, astronomia e auto-defesa, destacando-se no uso da “naginata”, a arma que caracterizava as guerreiras da nobreza japonesa denominadas onna-bugeisha. Tomando os princípios taoista do yin e yang, como filosofia de equilíbrio dinâmico dos opostos que se complementam, Takeko, ainda adolescente, passou a instrutora de artes marciais tendo, com apenas 20 anos, sido nomeada comandante de uma formação de mais de 100 mulheres guerreiras que constituíam a defesa pessoal do séquito de nobreza feminino da casa de Aizu.
Assumir-se como mulher, independente, numa sociedade fechada, implicava uma tarefa de resistência diária onde ganhava dimensão o escárnio e o desprezo a que as mulheres eram votadas quando assumiam funções exclusivamente masculinas. Desde sempre, o homem, cujo carácter seja duvidoso, utilizou a agressão psicológica e as práticas desleais como um meio de expurgar os seus próprios receios sociais e a sua incapacidade em constatar e aceitar a diferença.
Takeko nunca se intimidou com os seus pares e revelou qualidades heróicas na guerra que opôs os grandes senhores feudais ao Imperador. Na batalha de Aizu, na guerra que ficou conhecida como "Guerra Boshin”, Takeko perdeu a vida aos 21 anos tendo pedido á sua irmã para a enterrar junto a um templo, à sombra de um pinheiro, num lugar de oração, em nome de todos os que lutaram a seu lado.

17.9.18

A Última Samurai (1)

Castelo Aizu-Wakamatsu
Toco com a ponta dos dedos na enorme muralha que se agiganta em todas as direcções em redor do castelo de Aizu. Sinto a rugosidade áspera da superfície acidentada, as histórias de daimyõs e samurais que complementam o espaço, o equilibrio perfeito da soma vectorial das pedras ajustadas, a união impenetrável das juntas, onde não cabe o gume de um punhal, nem mesmo, dizem, as gotas incontroladas da chuva em dias de temporal. 

As muralhas do castelo de Aizu-Wakamatsu formam uma quadrícula fortificada com fossos profundos, jacintos que escondem troços de água e carpas brancas que patrulham as margens, portões e ferrolhos descomunais que nos transportam para a Liliput do outro lado do mundo e pontes ligadas a torres de menagem colocadas, estrategicamente, nos pontos mais altos do reduto do baluarte.
No centro de todo o complexo localiza-se a cidadela interior, residência do senhor feudal, rodeada dos aposentos dos samurais e dos soldados, contornados por múltiplos pátios interiores, áreas fechadas e paliçadas de comunicação que desempenhavam um papel crucial na organização da estratégia de defesa militar. 
Dispersos pelo castelo, os jardins, inicialmente exclusivos dos templos, foram posteriormente alargados aos territórios dos senhores feudais obedecendo a uma filosofia de equilíbrio com os elementos da natureza. Terra, água, fogo, vento e energia. Pontes sobre lagos, lanternas de pedra, caminhos feitos de rochas vulcânicas, areia e gravilha, pequenas ilhas e colinas, arbustos bonsai, tudo numa morfologia miniaturizada com pinheiros retorcidos com agulhas de aço e árvores de troncos nus debruçadas com ramos frondosos a tocar pequenas cascatas de água.

Construído em 1384, o castelo constituiu o centro militar e administrativo da região, dispondo de um regimento de 5.000 guerreiros e a escola de samurais mais famosa do Japão. A Aizu Hanki Nisshin-kan, acolhia aos 10 anos os filhos dos samurais preparando-os, não só nas disciplinas das armas e da equitação, mas em matérias como a astronomia e a meditação. 
(continua)

22.4.18

Instagram

Para os amigos que nos pediram deixo aqui a informação sobre as nossas contas de Instagram:

 => crvtravel.photography - tem como tema as viagens e alguns episódios relacionados com as fotografias

=> crvwildlife.photography - tem como tema a vida selvagem que fui fotografando por esse mundo fora.

Espero que gostem

2.4.18

Animal Farm no Texas

net

Ele reclamava que o seu espaço tinha o tamanho do Estado do Texas e que não se sentia confortável com a presença de estrangeiros e imigrantes nas terras que reivindica como suas. Perplexa li a notícia. Primeiramente estranhei a razão dessa afirmação uma vez que ninguém havia submetido qualquer requerimento de autorização para se instalar ou imigrar para o Texas. Sendo um estado sobejamente conhecido por segregar cidadãos de outros credos e raças, o apelido "Lone Star”, por que também é conhecido, contraria o termo “texas" que em dialecto indígena significa “amigos”. Quando li a declaração unilateral do cowboy mais conhecido da cidade de Alamo (cidade dizimada pelos mexicanos na rebelião de 1836) lembrei-me de imediato do livro de George Orwell “Animal Farm”: Quem é que quereria imigrar para um estado liderado por porcos? Só um idiota iria pactuar com o declínio da raça humana aceitando a perfídia revolução efectuada por porcos.

29.3.18

Karma

Genericamente o termo “karma” é referido quando alguma contrariedade ocorre na nossa vida, com carácter reincidente, e para a qual não conseguimos encontrar uma justificação plausível para essa infeliz convergência. Mas na realidade o “karma” é outra coisa. 

Com interpretações várias, de acordo com a filosofia ou a religião que tem subjacente, o termo tem em comum a ideia de aperfeiçoamento individual, progressão interior, superação de desafios, sendo a reencarnação sucessiva o caminho para a ascensão da alma a um estadío de pureza e de luz. 
No séc: I na Índia, homens e mulheres, praticantes das ortodoxias védicas, acreditavam que a vida se encontrava presa num ciclo kármico infindável fundado na morte e no renascimento. Os seus desejos compeliam-nos a agir em vida de modo a satisfazer esse princípio, sendo os seus actos determinados por um número rígido de obrigações védicas que acautelavam um renascimento kármico favorável na próxima reencarnação.

"Um mau karma significaria que podiam renascer como escravos, animais ou plantas. Um bom karma assegurava o renascimento como reis ou deuses”.

Porém, a aceitação dos dogmas kármicos, nem sempre foram pacíficos. Alguns crentes revelavam que sentiam o seu objectivo de vida frustrado numa espiral infinita cuja apoteose kármica não era feliz. E isso porque os próprios deuses esgotavam o seu karma benéfico, morrendo e renascendo numa condição menos exaltada, ressurgindo ab inicio para principiar nova espiral contínua. O sentimento de frustração acentuou-se. Deprimidos, pela transitoriedade e a inquietação que os prendia ao “samsara” - uma sucessão infinita de obrigações relacionadas com o ciclo da morte e do renascimento -, alguns crentes partiram dos seus lugares comuns, evadindo-se dessa espiral infinita obrigacional, passando a viver em reclusão social, encontrando no eremitismo a resposta mais adequada à sua existência. Os dogmas e rituais impostos foram rejeitados, procurando no isolamento e na reflexão as respostas para uma crescente insatisfação pulsional e religiosa.
Ciclo infinito

Aos eremitas chamaram-lhes renunciantes. Não porque entendessem o seu abandono como um falhanço social, antes pelo contrário. Os insatisfeitos, aqueles que se atreviam a procurar respostas por si, eram encarados como intrépidos pioneiros, corajosos sociais que não temiam o desconhecido, desafiando o destino que lhes estava reservado. Foi entre os renunciantes que as massas procuraram um jina. Um conquistador espiritual, ou um buddha iluminado que lhes desse resposta às necessidades da alma, solucionando a questão da espiral karmica que já não respondia satisfatoriamente às necessidades espirituais constituindo, antes sim, um enorme encargo que pendia desconfortavelmente sobre os ombros de cada um.
Os renunciantes tornaram-se modelos sociais arrojados. A fuga aos limites védicos, a emancipação e a procura individual das respostas sagradas, revestia-os de credibilidade. De renunciantes sociais isolados, os proféticos emancipados passaram a agregar-se em pequenas comunidades. Viviam como eremitas em florestas, observavam rituais personalizados e eram seguidos por grupos de discípulos que se sentiam atraídos pela nova pedagogia religiosa que solucionava algumas questões transcendentais. A elevação a jina promoveu o surgimento dos mestres que advogavam princípios que prometiam a revelação dos segredos controversos do karma. Profetizavam um dharma próprio evidenciando que a sua filosofia era aquela que conduziria à esperada libertação da alma.

Era comum os jinas serem visto a pregar na estrada, seguidos por multidões de renunciantes, reconhecidos pelas suas túnicas ocres, percorrendo as rotas comerciais, a par de caravanas e mercadores, sendo a sua chegada às povoações uma revelação desejada. Reuniam-se nas praças do mercado, criando palanques de feira para ditarem ao povo o seu dharma e assim os converterem. Surgiram rivalidades. Diferentes jinas profetizavam diferentes dharmas, reivindicando cada um o seu lugar próprio de destaque junto das comunidades. Nas aldeias, os chefes de família escutavam com admiração estes oradores, seguidos de um séquito de renunciadores a quem o povo apelidava de “sábios silenciosos”.
Alguns instalaram-se nas aldeias. Surgiram as primeiras escolas. Umas com ensinamentos radicais de despojamento total dos bens materiais, vivendo de asceticismo e meditação, pernoitando ao relento e sobrevivendo da colecta de bosta de vaca, frutos, raízes e plantas silvestres. Outras, menos radicais, subsistiam da caridade da população, preconizando a amizade e a paz de espírito, evitando a hostilidade e os desentendimentos estéreis.  

De entre todos os pregadores da época, houve um que se destacou. Escutado por reis, bramanes e senhores hindus, movimentou multidões. Apóstolo da não violência, Mahavira preconizou aos humanos uma única obrigação: “nenhuma criatura que respire, exista, viva e sinta seja morta ou tratada com violência, sujeita a abusos, torturada ou expulsa. Esta é a lei pura, imutável e eterna, que os iluminados, os que sabem, proclamam”. Esta perspectiva de vida era atingida graças a uma exegese asceta que tornava os seus seguidores conhecedores de uma realidade preocupada em ter uma atitude de benevolência perante todos os seres vivos. Todo e qualquer ser, humano, animal, planta ou seixo era tratado com amizade, boa vontade, paciência e gentileza sendo imperativa a regra da proporcionalidade. “Todos deviam ser tratados como gostariam de ser tratados. O dukkha que impregnara o mundo inteiro era causado pelos actos das pessoas ignorantes que não percebiam que ao tratarem mal o seu semelhante estavam a negar o seu próprio eu”. Num sermão, após a iluminação de Mahavira, feito no santuário do espírito nos arrabaldes da cidade, perante os reis de Champa e uma multidão de seguidores, Mahavira prega a dissociação dos antigos rituais védicos, onde animais eram sacrificados, preconizando uma comunidade afectuosa, com uma visão de unidade e empatia universal, presente em todos os actos praticados. 

O novo ideal já não consistia na mera abstenção da violência, mas num exercício efectivo de ternura e simpatia ilimitados. O caminho de uma nova espiritualidade traça o inicio de uma nova era axial motivada pelo imperativo categórico de novas respostas perante as dúvidas do espírito. O novo karma é agora traçado por dentro, sem espirais infinitas e com voluntariado activo, perante todos aqueles que coincidem, de alguma forma, no nosso trajecto da vida. A doutrina, absolutamente intemporal, deveria ter praticantes comuns de todos os credos e religiões. Seria certamente uma forma de transformar a convivência cínica dos nossos dias, numa mais valia recíproca alcançada com a saída do beco da intolerância, da morte e da guerra. CRV©2018

20.1.18

No Prado - Mariano Fortuny, um artista da cor

Berbere - Marrocos
Com a djellaba descomposta, os pés descalços e a cara encoberta com um keffiyeh branco, o modelo berbere chama a atenção pelo olhar dócil e introspectivo, distante e, no entanto, tão perto, com pose descontraída e olhar tranquilo para o artista, curioso em captar a alma do mouro.
O desafio proposto pelo Museu do Prado consistia em descobrir o percurso artístico e as influências berberes de Mariano Fortuny (1838-1874), o pintor espanhol com maior projecção internacional no século 19. Das 169 obras expostas, 67 nunca tinham sido integradas em exposições, umas porque nunca tinham saído da sombra das colecções particulares, outras porque os museus de proveniência nunca tinham acordado em ceder as obras, o que torna esta exposição a primeira a agrupar uma mostra representativa da vida do artista.
Mariano Fortuny 1838-1874

Fortuny nasceu em Reus, numa pequena cidade 100 km a sul de Barcelona. De ascendência modesta, ficou órfão de pai e mãe muito cedo, tendo sido criado por um avô, carpinteiro de profissão, que nas horas vagas se dedicava à construção de figuras de cera.
Ainda jovem os seus desenhos a carvão despertaram a atenção de um benfeitor catalão que lhe atribuiu uma pensão mensal para adquirir pincéis e aguarelas, alargando assim o potencial do artista que mais tarde viria a receber outros donativos que lhe permitiram ingressar na Escola Superior de Belas Artes de Barcelona.
Com apenas 19 anos, vence um concurso, promovido pela Câmara de Barcelona, cujo prémio consistia num estágio em Roma junto de outros artistas catalães, comunidade artística espanhola que, no passado, já havia acolhido pintores como Velásquez, Goya e Ribera. O estágio tinha como contrapartida o compromisso de fazer chegar à autarquia as obras que ía produzindo, razão pela qual o Museu Nacional de Arte da Catalunha agrupa hoje o maior número de quadros do artista.
Roma foi o tempo dos estudos clássicos. Acompanhado de pintores como Rosales e Puebla, Fortuny entre 1857-59 explora a técnica e procura uma identidade própria no movimento romântico europeu, enaltecendo o sentimento sobre a razão e a imaginação sobre os entediantes estereótipos racionais clássicos com os quais não se identifica manifestando, por diversas vezes, a vontade de pintar sem compromissos mas as suas limitadas condições económicas obrigavam-no a ficar refém das encomendas dos primeiros clientes e das obrigações que tinha para com os responsáveis da Câmara de Barcelona que lhe subsidiavam a estadia.
Mas foram precisamente esses mesmos patrocinadores que ao solicitarem o seu regresso a Barcelona, em 1859, iriam mudar radicalmente o trajecto artístico de Fortuny. Na sequência do ataque de tribos marroquinas ao forte espanhol de Anyera, em Ceuta, Fortuny foi chamado a acompanhar o exército espanhol tornando-se o cronista gráfico da guerra espano-marroquina. Essa estadia iria influenciar toda a  obra do artista com a introdução de elementos decorativos típicos do artesanato marroquino, os latões, os mosaicos coloridos, as paredes cor de terra quente, a simplicidade e a modéstia das poses informais do povo, a luminosidade vibrante das cores e do sol africano, os grandes espaços, os detalhes das tapeçarias, a vida simples das tribos do deserto. O quadro "O fazedor de tapetes" é sem dúvida o meu preferido tendo sido largamente conseguida a identificação dessa atmosfera tranquila com um detalhe absolutamente exuberante.
O fazedor de tapetes - 1870
Fortuny preferiu a beleza tranquila dos espaços coloridos às crónicas de guerra. Talvez por isso mesmo estivesse patente na exposição um número significativo de desenhos a carvão e aguarelas  evocativos desse lado melhor da vida, em detrimento das emoções fortes do conflito. A batalha de Wad-Ras, a vitória das tropas da rainha Isabel sobre o sultão Mohamed IV, os campos de guerra, os feridos, o caos, a morte e todos os constrangimento que os conflitos bélicos envolvem, foram substituídos pela plasticidade técnica das emoções vitoriosas do espírito. 

De regresso a Barcelona foi-lhe encomendada pelos seus patrocinadores a tomada do acampamento de Muley el-Abbás y Muley el-Hamed pelo exército espanhol tendo, curiosamente, Fortuny pintado o assalto sob o ponto de vista do derrotado exército marroquino.
O estúdio de Fortuny
Das viagens que realizou, colectou um número significativo de peças marroquinas, armaduras medievais, jarrões, tapetes, telas coloridas, vitrines, porcelanas, bandejas de metal, objectos decorativos que celebrizaram o seu estúdio, tornando-o local de culto entre o seu grupo de amigos.

Fortuny morre com 36 anos, vitima de derrame cerebral integrando o grupo de génios que nos deixou prematuramente. Caravaggio, Vermeer, Modigliani, Van Gogh, Schielle, Souza-Cardoso, Frida Kahlo, Basquiat e tantos outros que tinham um futuro brilhante desapareceram inconformadamente no auge das suas carreiras.
A riqueza do mundo da arte constitui-se pelas diferentes capacidades cognitivas de cada artista, da sua percepção do mundo, das suas tendências, expressões emocionais, temperamentos e, fundamentalmente, desse submundo secreto e próprio que todos temos e que constitui a nossa própria individualidade.
Fortuny deixou-nos uma obra de efeitos brilhantes, desvelos minuciosos com os objectos e uma embriagante profusão de jogos de luzes, tons e sombras, ambientes sedutores carregados de uma tranquilidade natural. Sensível, pintava com o coração, querendo surpreender-nos. Sem dúvida que conseguiu.
Os filhos do artista no pavilhão japonês

27.11.17

O Temple Expiatori de Gaudí

Sentada no centro do "Temple Expiatori” rodeia-me uma floresta de árvores de pedra formada por troncos robustos com ramos petrius que se expandem, em folhagem harmoniosamente ramificada, até um tecto iluminado que me faz lembrar as estrelas do céu.
Sagrada Família - 2026
À minha esquerda o sol da tarde atravessa os vitrais de cores quentes, virados a sul, refractando a luz colorida e agigantando as imagens da vida de Cristo dando um colorido harmonioso ao chão da Basílica.
Olho em redor e ao contrário de outros templos de grandes dimensões, a arquitectura de Gaudi mudou o conceito gótico clássico dos grandes espaços. A forma e o pathos do sistema arquitectónico ganhou aqui novas geometrias e volumetrias, metamorfoseando a mística religiosa fria e descontínua, das grandes naves de pedra fria, que as grandes catedrais europeias geralmente nos sugerem.
Na decoração interior, foram excluídos os elementos carregados de mensagens apocalípticas. Ausentes estão os excertos da Bíblia que retratam a violência dos justos, o sacrifício místico dos santos, a redenção dos pecaminosos ou a destruição das cidades do Vale de Sidim. Em lugar da mística sacrificial encontramos um complexo arquitectónico que sugere uma combinação de elementos naturais ligados por uma relação simbólica de pertinência, que produz uma sensação agradável e de bem-estar.
Retiro o meu pequeno caderno e escrevo umas notas sobra as impressões que o espaço grandioso, impregnado das concepções geniais de Gaudi, me sugerem.
Por toda a Basílica, a luminosidade assume um protagonismo significativo, não só na cobertura da floresta densa, onde as abóbadas do tecto filtram a luz do dia, salientando os pormenores artísticos de folhagem no tecto, mas também nos subterrâneos e na cripta onde Gaudi fez questão que a luz chegasse de forma directa evitando qualquer iluminação artificial. Formada por sete capelas, dispostas em meio círculo é numa pequena capela da cripta, decorada com um baixo relevo de Josep Llimona, representativo da Sagrada Família na casa de Nazaré, que hoje se celebram as Eucaristias.

O inicio da construção
A ideia da construção de um templo para homenagear a Sagrada Família surgiu nos finais do séc. 19, no seio da Associação dos Devotos de São José, tendo o seu presidente, o livreiro Josep M. Bocabella, sido o seu mentor. Iniciada a procura de um local condigno com o culto, confrontou-se Bocabella com o valor exorbitante dos terrenos na cidade muralhada de Barcelona, acabando por encontrar uma quadrícula mais económica, nos arredores da cidade antiga, tendo por isso tido a possibilidade de adquirir um talhão de terreno de maiores dimensões do que aquele que inicialmente tinha idealizado. O local era modesto, rodeado de hortas, casas de camponeses e um novo bairro operário que se desenvolvia paralelamente à explosão da revolução industrial. A localização, fora da zona privilegiada de Barcelona, valeu-lhe durante muitos anos a denominação da "Catedral dos Pobres”. 
Corria o ano de 1880 e dois anos mais tarde iniciavam-se os trabalhos de construção do templo, com a colaboração do arquitecto Francisco del Villar que, após entrar em rota de colisão com Bocabella, seria substituído 1 ano mais tarde por Antoni Gaudí, um jovem arquitecto visionário que apresentou uma maqueta revolucionária, com uma exuberância e um significado que elevaria o projecto inicial do templo gótico a Basílica, competindo orgulhosamente com a catedral medieval de Santa Maria del Mar, instalada na zona antiga da cidade de Barcelona.
Fachada do Nascimento
São raras as catedrais que visitamos para as quais o nome dos arquitectos envolvidos torna a visita uma descoberta. Quando é que ao visitar a gótica Westminster Abbey nos recordamos dos seus arquitectos? Ou Jean de Chelles e Pierre de Montreuil, dois dos arquitectos da gótica Notre-Dame? Ou ainda a bizantina-gótica São Marcos? Todas estas catedrais são uma revelação maior da arte românica ou gótica mas o que nos conduz de facto à Sagrada Família é a exuberância das abstrações surpreendentes, convertidas em forma e volume, pela mão de Gaudí. A floresta de pedra, metamorfoseada como uma gruta, as pulsões transfiguradas nas formas que se afastam dos elementos tradicionais carregados e, particularmente, as inserções naturalistas dispostas num espaço arquitectónico com uma simbologia de união entre a terra e o céu.
Gaudí, para além de história, estudava a natureza e esse interesse encontra-se reflectido por toda a basílica onde penetrou de forma evidente o mundo morfológico natural transfigurado. Aquilo que poderia ter sido uma estrutura arquitectónica tradicional transformou-se numa arquitectura de elementos naturais ornamentais. 
Na fachada do Nascimento, a simbologia dos elementos utilizados traduzem, todos eles, mensagens relacionados com a mística cristã. Emoldurado por um “cipreste", sinónimo de “vida imortal e hospitalidade”, vemos poisado um bando de "pombas brancas” como uma alegoria às almas puras que aguardam a sua entrada no "paraíso”. Este é o umbral do templo que une a terra e a o céu.
Altar
As "plantas e os pássaros", que representam a "alegria do nascimento de Jesus", as "duas tartarugas”, a da esquerda com barbatanas, virada para o lado do mar e a da direita com patas porque se encontra virada para o monte Montjuïc que rodeia Barcelona. Igualmente as gárgulas, que nos habituamos a ver nas igrejas góticas, geralmente representadas com ornatos animalescos ou figuras monstruosas, numa advertência de vigilância contínua aos fiéis que o demónio nunca dorme e que é preciso estar alerta, não tiveram aqui lugar. Na Basílica, as gárgulas de chifres e as linguarudas foram substituídas por uma infinidade de animais e plantas que saltam vigorosamente da pedra inerte numa fertilidade da natureza que envolve harmoniosamente todo o espaço.
As dezoito torres que se elevam nos céus de Barcelona seguem critérios rigorosos de volumetria e altura, projectados por Gaudí, obedecendo à máxima de que “a obra do homem não deverá ultrapassar a de Deus” referindo-se à altura das torres da Basílica que não deveriam exceder a altura do monte Montjuïc que se encontra a montante de Barcelona. 
Gaudí construíu, involuntariamente, uma aura mística em seu redor potenciada pela sua personalidade reclusa e introvertida. Devoto confesso, via manifestações de Deus em todo o lado, na Basílica, nas torres, nas representações morfológicas na pedra patente no simbologismo da sua criatividade. Da nossa visita, apreendemos essa visão acutilante, genial. A transição do clássico frio e distante para o novo pathos natural. A mudança, das pulsões fatalistas para a harmonia espiritual das almas.

30.10.17

O fotógrafo - #METOO

O cinzento das paredes e o crucifixo por cima do quadro davam à sala de aula um ar tão monótono quanto austero. Com três grandes janelas em formato de ogiva envidraçada, a luz irrompia pelas vidraças refractando-se lentamente em raios tingidos com as cores do arco-íris. Beatriz fugia para longe da voz monocórdica da professora e perdia-se na dança das partículas suspensas no ar. Interessava-lhe mais a razão porque que se mantinham a flutuar, ou qual a fresta por onde entraria o vento que as fazia remoinhar, do que o monólogo enfadonho sobre o sistema morfológico dos peixes, o pedúnculo das plantas ou o sistema gastro-intestinal dos pássaros. Com uma silhueta esguia, cabelos louros compridos e cara espevitada, os seus olhos azuis eram dois globos curiosos que procuravam ávidos os reflexos onde se desenhavam os contornos das grandes questões do mundo.

A campainha ressoou pelos corredores da escola. Em uníssono, o arrastar das cadeiras dava por terminada a aula. A hora do almoço passava depressa por isso Beatriz tinha que correr para conseguir apanhar o fotógrafo da escola ainda aberto pois ansiava ver as provas das sessões do curso que iriam ficar para a posteridade.
Com a pressa dos adolescentes correu escada a baixo, saltando os degraus dois a dois, e disparou em direcção ao portão procurando evitar o congestionamento da saída quando todos se acotovelavam para se lançarem para fora dos muros, onde a cidade se agitava a cada passo desengonçado da vida. Logo à saída, o fumo e o cheiro a diesel dos carros entranhava-se nas narinas sufocando os primeiros minutos de liberdade. Era preciso inspirar profundamente e sair a correr por entre os carros arriscando a censura das buzinas imprevistas e os transeuntes que se atropelavam a reclamar prioridade na passagem.
Sair da escola sozinha era sempre uma experiência de iniciação. Lá fora, onde a protecção dos muros desfazia a castidade das conversas amenas, havia sempre o receio, no desenrolar das faixas da personalidade, em deparar-se com bloqueios, mal-entendidos ou com aqueles que mastigam vagarosamente a crueldade como um naco amargo de carne enrolado numa boca sem dentes.

Beatriz correu depressa para o fotógrafo. A loja ficava numa daquelas ruas em que os carros se sucediam com uma inquieta indiferença, apenas respeitando as pausas impostas pelos semáforos, para depois seguirem, mecanicamente, como se a rua fosse um amontoado opaco onde nada constituía uma mais-valia para se deterem.
A loja tinha o ar antiquado dos fotógrafos resistentes de bairro. A porta, em ferro antiga, dava-lhe um ar pesado e decadente. Nas montras laterais, acumulavam-se fotografias de casamentos e baptizados amarelecidas pelo tempo. Desconhecidos, que deixaram, no instante do sorriso, as tristezas e as amarguras atrás da câmara, fora dos registos da posteridade dormente da vida.
A porta encontrava-se entreaberta. Com a timidez dos adolescentes, Beatriz atreveu-se a espreitar para ver se havia movimento. Nada. A loja estava vazia. Na parede, por cima do balcão de madeira, um relógio, marcado pelo tempo, indicava que faltavam cinco minutos para a uma. Por pouco tinha encontrado a loja fechada. Decidiu entrar, dando os bons-dias em voz alta para ver se alguém aparecia. Do fundo da loja, por detrás de uma cortina de veludo encarnada, reconheceu o fotógrafo da escola.
- Bom dia! Estava a fechar para o almoço - disse o homem
- Bom dia. Vinha ver as provas das fotografias da escola. Ainda é possível? É rápido, não demoro mais que 5 minutos.
- Muito bem, mas primeiro deixa-me fechar a loja para não entrarem mais clientes.
Contornou o balcão e fechou a porta no trinco. Depois, convidou Beatriz a segui-lo.
- Por aqui! - disse ele - Estive agora mesmo no laboratório a trabalhar nas vossas fotografias. Se quiseres podes seguir-me para escolheres as provas.
Beatriz seguiu-o com curiosidade. Desceram uma escada íngreme que levava ao que parecia ser a cave da loja. Beatriz desceu com dificuldade em graduar a visão à transição da claridade do dia para a escuridão repentina. Para evitar passos em falso tacteou com o pé a ponta dos degraus evitando assim cair.
Ao fundo da escada, sem que conseguisse perceber o que a rodeava, um neon indicava à sua esquerda: “câmara escura”.
- Entra e vem ver as fotografias - disse o fotógrafo.
Por detrás de uma cortina preta um compartimento quase às escuras era iluminado sumariamente por uma luz ultravioleta que pendia do tecto. Por cima da sua cabeça percebia-se o recorte de inúmeras fotografias suspensas, presas por molas, a fios que ligavam ambos os lados das paredes, como se se tratasse de roupa a secar numa corda. O ar, estava impregnado com um cheiro acre, proveniente dos produtos químicos que se encontravam nas tinas de revelação, tornando a respiração pesada e arrastada em esforço.
- Gostas de fotografia? - perguntou o fotógrafo
- Sim, gosto. Posso escolher as da escola?
Na cave, todos os ruídos do mundo pareciam ter desaparecido e eram agora pouco mais que sussurros encobertos vindos do andar de cima. Já não se distinguia o motor dos carros, o caminhar das pessoas e todo o mundo físico parecia agora uma epifania desolada, lá longe, fora do alcance da cave. Beatriz mantinha-se imóvel enquanto aguardava que o fotógrafo arrumasse uma bancada com vários objectos desordenados. Conseguia distinguir, no lusco fusco violeta, os contornos das tinas com líquidos transparentes, uma guilhotina, material fotográfico disperso, lentes, uma máquina que parecia um amplificador e papel de fotografia seguro por pinças.
- Com esta luz não se consegue ver quase nada. Pode acender a luz? - perguntou Beatriz -
- Já acendo, mas olha, se gostas de fotografia vem ver como se faz uma. Eu ensino-te - disse o fotógrafo -
Com postura de mestre, o fotógrafo começou a explicar o percurso das fotografias, desde o momento em que chegavam à loja, em rolos de 35mm, até ao seu tratamento na câmera escura e a posterior ampliação dos negativos.
- Queres ver como se amplia uma fotografia? Chega aqui! Coloca as duas mãos neste aparelho, espreita por este sitio até veres o negativo. Já vês? Agora roda para focar até a ampliação ficar nítida. Consegues ver o resultado?
Beatriz estava petrificada. O fotógrafo ía-lhe dando instruções sobre a máquina, mas ao mesmo tempo, encostou-se desconfortavelmente às suas costas. Sem que esperasse pegou-lhe nas duas mãos, abusando de uma proximidade que era manifestamente indesejada e que a deixou sem conseguir articular uma palavra. O coração de Beatriz batia com força e as mãos geladas ganharam o tremor dos estados de ansiedade urgentes. Tentou manter a calma. Sabia que estava numa cave e que não tinha comentado com ninguém que vinha a esta loja. Ninguém estaria à sua espera nas próximas horas. Sabia que se gritasse ninguém a ouviria pelo que tentou fingir que não percebia o que se passava enquanto o fotógrafo lhe segurava as mãos, insinuando-se por detrás com o corpo cada vez mais colado ao seu. Sentia-lhe as pernas e a barriga proeminentemente desconfortável. Sentia-lhe agora uma respiração ofegada contra a debilidade dos seus cabelos. Olhando por cima do ombro direito de Beatriz o fotógrafo debruçava-se agora para a frente, contraindo o corpo contra o de Beatriz deixando-a em pânico imobilizada.
Beatriz permanecia estática, parada. Queria ser sombra, ser espectro, ser nuvem que se dissipasse e desaparecesse mas manteve-se como se estivesse ausente. Continuava sem se conseguir mexer. - Pensa, pensa o que fazer! Depois, o medo começou a tomar conta do corpo. Pensou que podia acontecer algumas daquelas coisas das que já ouvira falar a outra gente. Pensou em como se poderia defender. Estudou todas as hipóteses numa fracção de segundo que lhe pareceram séculos. Lutar. Seria capaz de lutar. Mas não conseguia reagir. Não conseguia mexer-se sequer. Sentia-se paralisada. Só pensava em sair dali. Depressa. Sem no entanto demonstrar exaltação ou ansiedade.
- Gostei muito. Que horas são? - perguntou Beatriz voltando-se, tentando criar espaço entre ela e o fotógrafo.
O homem recompôs-se e incomodado com a questão olhou para o relógio.
- São uma e meia - disse o homem
- Tão tarde! Muito obrigada pela demonstração mas tenho que me ir embora. A esta hora já devem estar as minhas três amigas lá fora à minha espera. Disse-lhes para me virem buscar aqui para irmos almoçar juntas. Já devem estar na porta. Se não se importa as fotografias da escola ficam para outro dia.
Nisto o fotógrafo desligou a lâmpada ultra-violeta e acendeu a luz iluminando convenientemente a câmara escura. Adaptando os olhos à mudança Beatriz foi-se aproximando da cortina escura preparada para correr escada acima.
- Vou lá a cima ver se as minhas amigas já estão à minha espera na porta.
E sem olhar para trás, correu escada acima, abriu a porta da loja e desatou a correr sem parar rua fora, até chegar à escola. Nunca mais voltou à loja.
Entre muros, entre a segurança dos colegas e dos professores, Beatriz quis esquecer o episódio e manteve-o por muitos anos perdido no tempo.

O movimento #METOO, que tomou conta do meio cinematográfico norte-americano, tendo já lançado nomes para a fogueira de outras áreas da indústria, veio expor a condenação de múltiplos casos de assédio levados a cabo por personalidades que se encontram em cargos de destaque profissional e que consideram ter um ascendente sobre as vítimas. O predador, normalmente, caracterizado como um narcisista-egocêntrico, nunca pensa nos danos, por vezes irreversíveis, que promove nas suas vítimas. O predador obsessivo-compulsivo, não resiste à necessidade de cercar e de se impor na vida das suas vitimas. Alimenta-se do bem estar dos outros. Inveja a harmonia e a felicidade familiar. Deseja aquilo que não tem. Distorce a realidade e culpabiliza a vitima por tudo aquilo que de negativo lhe acontece. O não da vitima é sempre um nim que só foi veiculado para se fazer difícil porque estará sempre interessada.
O predador sexual, sob as várias modalidades, seja o masturbador em privado que fotografa a vítima para a endeusar e faz dessa imagem propriedade sua, seja o violador que assedia directamente a vitima, constituem condutas egocêntricas com patologia obsessiva-compulsiva, onde as vitimas são frequentemente o alvo de uma enorme raiva adjacente resultado de um conjunto de impotências sexuais e vivenciais, incapacidades sociais e frustrações psico-afectivas. É tempo de mudar, de denunciar, de respeitar a esfera privada dos OUTROS.

12.6.17

"Extraordinary Delusions and the Madness of Crowds"

Reza a história que no ano de 1661, John Mompesson, um abastado proprietário inglês, que merecia a deferência e o respeito da comunidade de Tedworth, entrou certo dia em conflito com William Drury, um indigente que deambulava pelas ruas da cidade a tocar tambor sobrevivendo da esmola alheia e da solidariedade do povo. Mompesson sentia-se incomodado com o barulho. O batuque permanente à sua porta trazia-lhe moléstia e irritação. Lord Mompesson tomou assim William de ponta, acumulando ódios mesquinhos e olhares de reprovação. Decidido a acabar de uma vez por todas com o batucar à sua porta, resolve instaurar um processo judicial no tribunal da cidade, com juízes, quorum, testemunhas e tudo aquilo a que um Lord influente tem direito, nas situações delicadas em que a persuasão das massas se sobrepõe às faculdades cognitivas da razão. Após largas dissertações que incidiram sobre os malefícios provenientes dos ruídos dos tambores, o colectivo de juízes deu razão a Mompesson e, vitorioso na sua causa de pedir, a sentença foi implacável . “Retire-se o tambor a William Drury e faça-se Lord Mompesson seu fiel depositário”.
De William nunca mais se voltou a ouvir qualquer batuque, nem nas ruas, nem no quilombo distante, mas os problemas de Lord Mompesson, ao invés de acabarem, estavam agora prestes a começar.

Na sua mansão de colunas jónicas, com dois pisos e balaústradas nas varandas, o tão desejado sossego iria transformar-se num desassossego infernal. E isto porque Lord Mompesson, desde que veio para casa com o tambor, passou a ser interrompido no seu sono com ruídos que de início não conseguiu identificar de onde vinham mas que, pouco a pouco, percebeu tratar-se do som de um tambor que ressoava pela casa toda. E, procurando como um louco de onde poderia vir esse ruído, ritmado e infinitamente incomodativo, Mompesson correu a ver se o tambor de William Drury se encontrava no local em que o havia guardado. Para seu espanto, lá continuava, impávido e sereno, concluindo que o instrumento impertinente membranófono, que perturbava a sua estabilidade física e emocional, não era definitivamente o tambor de William pelo que se impunha descobrir do que se tratava.
Repetindo-se todas as noites o mesmo enigma, Lord Mompesson acreditou que a sua casa estaria assombrada e que seria vitima de alguma praga de bruxaria lançada certamente por William e alguns dos ciganos que o acompanhavam. 
The devil and the drum Saducismus Triumphatus (1700).
Chamou por isso os sábios da época para constatarem pessoalmente o mistério. 
Joseph Glanvill foi um famoso clérigo inglês que se destacou nas áreas da ciência e da filosofia. Defensor da existência de fenómenos sobrenaturais, sustentou no seu livro “Sadducismus Triumphatus” a tese da existência de bruxas e feiticeiros, com poderes sobrenaturais malignos, entendendo que na sua génese estaria uma seita, que remontava ao tempo de Cristo, e que negava a imortalidade da alma.
Glanvill foi um dos sábios que procurou uma justificação para a origem dos ruídos na casa de Mompesson, tendo tomado nota que “ao visitar o quarto das crianças observei um arranhar debaixo da cama inexplicável”.
Joseph Glanvill

O caso ficou conhecido como “O Tambor de Tedworth” e vivia-se à época uma verdadeira caça às bruxas por virtude do espírito persecutório da Inquisição que pela Europa fora realizava, indiscriminadamente, autos-de-fé, perseguições e torturas generalizadas a todos aqueles que manifestassem cepticismo ou práticas contrárias à fé cristã.
Nunca foi dada uma explicação inequívoca, subsistindo, para os crentes nos fenómenos sobrenaturais, a intromissão de um espírito maligno e, para os cépticos, a conjura de William e dos seus amigos que, noite após noite, vinham até à casa de Mompesson para o castigar, atormentando os seus dias e a sua paz.
Um desses cépticos foi Charles Mackay que, 100 anos mais tarde, viria a escrever o livro “Extraordinary Delusions and the Madness of Crowds” sobre as falsas impressões e o efeito que um fenómeno fraudulento poderá ter sobre as massas. Referindo-se ao fenómeno de Tedworh conclui que teria sido manifestamente fraudulento e que Mompesson convencido de fenómenos sobrenaturais teria sido facilmente enganado.

Lembrei-me desta história, porque os fantasmas das crendices no sobrenatural continuam a aterrorizar e a vitimizar cidadãos frágeis e desprotegidos que por inércia dos seus governantes são agredidos, mutilados e assassinados pela cor da sua pele, pelo credo que professam ou pelo género ao qual sentem que pertencem. Na Tanzânia, várias crianças albinas são anualmente selvaticamente mutiladas porque se crê que os seus membros têm poderes sobrenaturais quando utilizados em rituais de bruxaria. No século 21 não seria tempo de actuar na defesa e protecção dos mais frágeis?

4.6.17

De Mineralibus de Albertus Magnum

Muito antes da Inquisição ter chamado à colação os arautos moralizadores da sociedade, expurgando na fogueira os inconformados com as mentes hipócritas fossilizadas, castrando os cupérnicos da ciência e as novas ideias, encontrando sempre espaço na rama do palanque para queimar os herbários e as bruxas de ervanária, houve um frade dominicano, nascido na Alemanha, sábio medieval, escolástico, que se destacou numa pluralidade de áreas da ciência que lhe valeram o apelido honorífico de “Doctor Universalis”. Acredita-se que Albertus Magnum tenha nascido pouco antes do ano de 1200 e terá sido quando estudava em Pádua que terá tido uma visão da Virgem Maria que lhe mudou a vida e o fez optar pelo sacerdócio. Apesar da oposição da família, decide entrar para a Ordem dos Pregadores, lecciona em Colónia e em Paris, altura em que São Tomás de Aquino se torna seu discípulo, aprofundando uma multiplicidade de valências científicas que abrangiam a astronomia, a teologia, a mineralogia, a física e a filosofia. Mas foi ao ler um excerto do seu tratado de mineralogia intitulado “Mineralibus” que me interessou particularmente aquilo a que Magnum apelidou “A Forma e o Poder das Pedras”. E escreverei daqui em diante Pedras, com letra maiúscula, porque Albertus Magnus e os seus discípulos inspeccionaram-as minuciosamente, de todos os lados e quadrantes, tirando ilações, fazendo especulações, escrevendo dissertações e chegando a conclusões que inovaram para sempre o panorama geológico da humanidade. E isto porque, simplesmente, uma Pedra não é só uma Pedra, meus senhores. Uma Pedra tem muito mais que se lhe diga pois não só tem côr ao olhar, formas arredondadas ou bicudas ao tocar, cheiro ao inalar, algumas sulfurosas outras acidas, mas muito mais importante que tudo isto Albertus Magnus, com a sua peculiar curiosidade incisiva, descobriu que as Pedras têm segredos intrínsecos dos quais não é possível dissociar. E disserta assim sobre os poderes das Pedras: 
Albertus Magnum 1200-1280

“As pedras têm poderes “ocultos” ou “escondidos” que não se podem identificar com os sentidos, como sejam, se estão quentes ou frias, molhadas ou secas, se se identificam com o ar, a água, a terra, o fogo, ou qualquer um dos quatro elementos da natureza”. 

Desses poderes, dá como exemplo os poderes ocultos das pedras que denomina como a sua “forma específica”. Essa “forma “ será aquela que agrupa uma pedra num conjunto da sua espécie e que ajuda a distinguir uma pedra magnética de uma safira. E acrescenta: 

“Duvidar que as pedras têm “formas substanciais” é loucura uma vez que essa certeza resulta da observação e da constatação da sua solidez e da sua matéria intrínseca. E isto porque os elementos que as constituem não têm a volatilidade das nuvens, da neve ou da chuva, uma vez que estes se desagregam com facilidade e se dissolvem em outros elementos. Aquilo que vemos acontecer na natureza das pedras é exactamente o oposto. Mais, nas pedras encontramos poderes - como o de expelir venenos, úlceras e atrair ou repelir o ferro - que não resultam de qualquer elemento conhecido. Segundo a visão partilhada por todos os especialistas, estes poderes resultam da espécie e da forma desta ou daquela pedra. Assim, fica claro que as pedras têm formas e espécies fixas e muito embora essas formas não sejam almas, como alguns dos nossos antepassados pensavam…considero que serão antes “formas substanciais” distintas, originadas por forças divinas com uma composição específica de certos elementos. Não há no nosso léxico denominação para essas formas, contudo, os diferentes tipos de pedras são susceptíveis de ser agrupadas em safiras, esmeraldas, mármores ou sílicas". 
Fotogr: net

Considerando a teoria de Magnus sobre o “poder oculto” das Pedras percebo agora o poder da pedra que trago há uns anos sempre comigo no bolso. Apanhei-a numa praia deserta. A sua forma branca, oval, achatada, suave ao toque, sem arestas, fez-me guarda-la acreditando que tem algum poder oculto para transformar a minha vida. Cada vez que venho a esta praia, e inicio as minhas caminhadas em silêncio à beira mar, gosto de a sentir contra a palma da minha mão, sentir-lhe a textura lisa e, ao modo de prece velada, acreditar que ao aperta-la alguma revelação órfica se irá  concretizar, com hierarquização das causas celestes e inquestionáveis efeitos terrestres da vontade do Criador. CRV©

6.7.16

Praga - Parábolas na Karluv Most


CRV© Prague - Karluv Most, Castelo e Catedral de São Vito
Kafka, nasceu a 3 de Julho de 1883 em Praga. Autor de uma série de contos, recorreu, como nos diz João Barrento, “à forma breve da parábola como sistema de significação intensivo”. Os seus exercícios são a "busca de uma verdade sempre diferida, ou do enigma da verdade e do absurdo impenetrável das existências, marca daquela técnica alusiva e defectiva de que fala Barthes: "o sentimento do absurdo transfere o Juízo Final para cada dia vivido pelas personagens (…) em que o que é próprio do ser e dos muitos seres que povoam as parábolas de Kafka é o facto de eles serem ao mesmo tempo óbvios e inalcançaveis”. 

Num desses contos Kafka vê-se como uma ponte, suspenso sobre um abismo. Lá em baixo, marulhava um ribeiro negro, gelado, cheio de trutas. Com as pontas dos pés enterrados num dos lados do abismo e as mãos cravadas no outro, é subitamente interrompido na sua pose segura por alguém que se aproxima e lhe bate com uma bengala, envolvendo-lhe os cabelos e saltando-lhe para cima das costas. Com o peso, Kafka perde a sustentação entre os dois pontos do abismo e, no seu sonho, desmorona-se, despedaçando-se nas pedras aguçadas do leito do rio que sempre o observaram, tão pacíficas, no meio das águas em fúria. 

Encostada ao parapeito da Karluv Most, observo o movimento dos turistas que atravessam a ponte sobre o Moldava, em passo lento, deslocando-se entre a Malá Strana e a Cidade Velha. Coloco-me “de fora” e sinto-me como o espectador atento, criando conotações entre o desempenho dos traseundes, actores de parábolas representativas de uma outra realidade que se desenrola por detrás do palco da vida. 
E aí somos como nos diz Barthes, um Réquichot ou um Kafka, aquele "que só pinta o seu próprio corpo: não esse corpo exterior, que o pintor copia olhando de través, mas o seu corpo de dentro”. Procuram-se as leituras que obtusamente implodem, sendo sensíveis ao magma silencioso que escorre e se infiltra nos nossos sentidos dando-nos uma "leitura analógica axial, - João Barrento - característica do processo de produção de uma parábola". 

E eis que vindo do lado da Cidade Velha, entra na ponte um aglomerado de gente que rodeia um grupo de jovens trajados com roupas medievais. Os que lideravam empunhavam orgulhosamente porta estandartes com bandeiras coloridas, onduladas pelo vento, onde se viam dragões, castelos, escudos e flores de liz sob fundos bicolores encarnados, amarelos, verdes e azuis, representativos dos ducados e dos antigos feudos locais. Deslocaram-se até meio da ponte e aí, os da rectaguarda, organizaram-se dois a dois, armados com uma parnafenália de instrumentos de sopro e percussão. Dispuseram-se a poucos metros dos meus pensamentos, quando o som dos clarinetes e dos trombones tomaram conta do tempo iniciando uma dança em redor das bandeiras que demarcavam o eixo de intervenção.   Tocaram e rodopiaram, enquanto os dançarinos com guizos nos chapéus e nas pontas dos pés, vestidos com fatos de licra encarnada e azul, dançavam e ofereciam flores aos presentes. Lançaram-se foguetes e atearam-se pequenos fogos de artifício para inflamar o ar e iluminar a visão. Com o ressoar dos bombos a música tornou-se virulenta e ao contrário de apreciar as flores e o espectáculo medieval, os décibeis soltos pelas maçetas atiradas por braços fortes contra a pele curtida dos bombos, fez-me virar as costas à confusão. 

Debruçei-me no paredão da ponte e fiquei a observar o correr das águas, os barcos que tranquilamente navegavam ao longe e que pareciam flutuar, os pássaros que atravessavam o céu incólomes ao barulho, a colina por cima da Malá Strana com os jardins coloridos que envolviam o castelo e a Catedral de São Vito. Apanhei uma folha seca do chão e deitei-a ao rio. Deslizou empurrada pela corrente e seguiu o seu curso em direcção aos amontoados de folhas encalhadas numa pequena repressa que forçava caminho em direcção ao estuário da foz do Moldava. 

Em marcha lenta, a procissão de bandeiras e a música empenhada afastou-se em direcção à outra margem do rio seguindo o seu curso pela cidade. Voltaram as vozes dos que atravessavam a ponte, os ruídos da cidade ao longe, as poses para as fotografias, o toque supersticioso nas estátuas dos santos, o beijo nos pés do crucifixo, sorrisos e abraços cúmplices daqueles que experimentam a densidade dos espaços que se abrem numa viagem, descobrindo recantos de luz para descansar. 

Karluv Most
Agarrada ao guia de Praga lia sobre os segredos da construção da ponte. As superstições que envolveram o início dos trabalhos, a curiosidade do dia especificamente escolhido para a sua construção. Carlos IV escolheu o ano de 1357, no dia 9 de Julho, pelas 5.31hrs da madrugada para lançar a primeira pedra. E a escolha não foi por acaso. Se juntarmos todas as datas num só número, 135797531, verificamos que é possível lê-lo da mesma forma em ambas as direcções e que a soma dos digitos 1+3+5+7+9 = 25, fornece-nos os 25 arcos que a ponte de 515 metros tem. Desde a data da sua construção, a Karluv Most presenciou inúmeros acontecimentos relacionados com a astrologia, a superstição, a caça às bruxas, a perseguição de judeus, a execução de inocentes posteriormente beatificados, e a concretização de profecias beatas que amaldiçoaram o lugar onde santo Nepomukk foi atirado, por ordem do rei Venceslau, às águas geladas do rio. 

Na estrutura de um dos pilares da ponte, reza a lenda, que se encontra escondido um tesouro dos Templários, aí colocado na época em que a Ordem foi expulsa da cidade. Entre os objectos desse tesouro estaria um martelo de pedreiro utilizado na construção da Torre de Babel. 

Com a banda ao longe, abafada pelos ruídos da cidade, voltei ao meu caderno de notas, como uma espectadora atenta ao mar inesgotável de planos e enquadramentos que se desenrolavam no palco da vida que corriam lentamente em frente aos meus olhos.