1.9.19

Pieter Bruegel no Kunsthistorisches Museum em Viena (3)

Torre Babel - 1563 - Bruegel - Vienna
“Naquele tempo a Humanidade falava uma única língua e todos usavam as mesmas palavras. Mas a certa altura, puseram-se a caminho, saindo do oriente, e chegaram a uma planície da Mesopotâmia onde se fixaram. Disseram então uns para os outros: “Vamos fazer tijolos e cozê-los no forno! Os tijolos serviam-lhes de pedra e o betume de argamassa. depois disseram:
“Agora vamos construir uma cidade com uma grande torre que chegue até ao céu, pois temos de ficar famosos antes que tenhamos que nos dispersar pelo mundo”.

“Eles são um só povo e falam todos a mesma língua. Agora puseram-se a fazer isto e depois ninguém mais os poderá impedir de fazerem aquilo que projectaram fazer. Vou lá abaixo confundir as línguas, de modo que eles não se entendam uns aos outros”. E desta forma, o SENHOR, dispersou-os por todo o mundo e eles desistiram de construir a cidade. Por isso, aquela cidade ficou a chamar-se BABEL, porque foi lá que Deus confundiu as línguas da Humanidade e foi lá que os dispersou por todo o mundo”.
Génesis - 11.8
Torre Babel - 1563 - Bruegel - Rotterdam
A sala onde se encontravam as duas Torres de Babel projectadas por Brugel, deixava antever as dissertações sobre uma sociedade representada no Genesis onde se preconizava a alegoria da convergência humana, expressa numa única língua e num só povo, empenhados numa sociedade elevada ao reino dos céus.
A ausência propositada de luz ofuscava as obras por detrás das cabeças dos mirones que aguardavam pacientemente a sua vez para admirar dois dos quadros mais famosos do mundo, sobre os quais incidiam dois projectores estrategicamente posicionados. Na subida em espiral, as metáforas do descontentamento dos homens ficavam entregues à nossa imaginação enquanto esperavámos pela oportunidade de tecer as nossas considerações sobre os homenzinhos que na escalada se debatiam com construções, procissões de fé e funerais, numa toma infinita de actividades que precludiam o futuro da humanidade.

Pacientemente, aguardei que todos à minha frente observassem e considerassem sobre o simbolismo das representações. Há, na arquitectura em arco da torre, um manifesto paralelismo ao estilo vespasiano do Coliseu de Roma, onde os espectáculos públicos, de teatro e morte, retratavam as dicotomias inevitáveis da sociedade, sem comiserações ou probidade, reflexo do lado mais negro da espécie humana.

"Deus vult”, A vontade de Deus não teve lugar nas alegorias das Torres de Babel.
"Deus vult homo atuem sic quiz” porque o homem assim o quiz.

Ao projecto inicial comum sucedeu-se a castração da língua primária comutando-a num linguajar vernáculo próprio de cada região. A disseminação populacional gerou partições, contradições, oposições, fronteiras, ganância, a superioridade abjecta orweliana de uns sobre os outros, a castração da esperança e o sobrevir monolinguístico das ditaduras, comum a todas as formas de aperfeiçoamento da incoerência humana.
O tempo de Brugel foi um período enxertado do Genesis do século 16. As partições sociais, a implantação do luteranismo e a divulgação de impressões gráficas, que sustentavam uma filosofia de esclarecimento do povo, promoveram novas dicotomias agigantando os contrastes e a percepção das injustiças e das diferenças criadas por aqueles que, protegidos pelo sistema, obscurantizavam, intencionalmente, as relações com os outros.

Essa religião de privação de oportunidades encontra-se espelhada nos arcos que ascendem em espiral desproporcionada, com fundações debilitadas rumo ao céu, num conjunto de forças, onde a vaidade, o orgulho desmesurado e a intolerância encontram a sua causa primeva, junto com a soberba e a ganância.
Uma última nota para os desconstrutores do futuro. Um conjunto de figuras minúsculas, desenvolvida de acordo com a pintura miniaturística da época, retrata uma infinidade de tarefas, ad eternum repetidas, que configuram um esforço de Sísifo, fútil e inútil , onde a opressão e a subserviência dos trabalhadores é manifesta contrastando com a auto-confiança e a prepotência dos intimidadores que exercem a gestão e a inspecção das obras.

Na sala anterior, mais tranquila e com espaço para a observação atempada e minuciosa, uma vitrine cativou a minha atenção. Lá dentro, um livro, de dimensões consideráveis, reporta o inventário do Kunsthistorisches Museum, referente ao ano de 1720. Numa das páginas, aberta ao observador, é visível um quadro com uma terceira Torre de Babel, executada por Bruguel, cujo paradeiro se perdeu no tempo, e que contrasta, em fundo e forma, com as restantes duas, de cores ocres e escuras, expostas na sala contígua. Esta Torre de Babel, de fundo branco, com uma Torre colada ao céu, reporta as mesmas futilidades e inseguranças que promoveram a desunião da humanidade, fazendo-o, contudo, num tom mais eficiente, acertivo e seguramente mais transparente.
CRV© Torre Babel - 1563 - Bruegel - Paradeiro desconhecido

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