The Great Wave of Kanagawa - Hokusai - c. 1829–32 |
Quando vi o mar em Kanagawa, lembrei-me do quadro de Hokusai, "A Grande Onda” (1830) e percebi toda a resiliência de um povo transportada na força dessa onda, a relação com o xintoísmo e a veneração dos elementos naturais quando estes se transformam em credo de aceitação e conformismo em relação aos imprevistos da vida contra os quais é impossível lutar. O xintoísmo, fundado nas tradições místicas pré-históricas japoneses, preconiza uma agregação de princípios espirituais politeístas que se manifestam em cultos de veneração aos elementos originais da natureza. A água, o vento, o fogo, o mar, as tempestades, o sol, e a lua fazem parte do grupo de consagrações essenciais do culto, assim como as montanhas e os lagos sagrados, os dragões, leões, raposas e divindades superiores que assumem posses desafiadoras sempre que se procura dar corpo a esses espíritos nos múltiplos templos espalhados pelo Japão.
Onna-bugeisha com naginata |
A "Grande Onda" tem essa imprevisibilidade dos elementos naturais com os quais os japoneses aprenderam a coabitar e a resignar-se. Executada no final do período “Edo” (1603–1868), descobri, nesta época, os traços que mais me fascinaram da história do Japão, com a tomada do poder dos Samurais, (1600), a defesa das fronteiras marítimas e o estancar dos ataques destabilizadores dos chineses e mongóis.
O período de paz que se viveu, promoveu as condições ideais para um desenvolvimento económico e cultural, com alfabetização da população e proliferação de escolas e academias para filhos de samurais. Foi a época do Shogunato, com extensos domínios territoriais (han), senhores feudais (daimyo) que habitavam castelos com um número proeminente de servos, camponeses e exércitos privados. Com uma estratificação social rígida a sociedade da época promovia uma secundarização do papel da mulher condicionando a sua autonomia ao poder discricionário do cônjuge ou da figura paternal do clã. Por isso, as histórias que chegam aos nossos dias de inconformismo ou de rebeldia são aquelas que nos dão uma imagem da vontade de ruptura com o conservadorismo instalado e, sem dúvida, constituem movimentos embrionários percursores de equiparação social de direitos e oportunidades entre ambos os géneros.
Nakano Takeko (1847-1868) |
Em 1847, os registos relatam o nascimento da filha mais velha de um nobre samurai de Aizu, chamada Nakano Takeko. Desde pequena revelou aptidões extraordinárias nas artes marciais tendo sido adoptada por um professor da escola de samurais - Daisuke Akaoka - que a introduziu na formação de elite recebendo aulas de literatura, astronomia e auto-defesa, destacando-se no uso da “naginata”, a arma que caracterizava as guerreiras da nobreza japonesa denominadas onna-bugeisha. Tomando os princípios taoista do yin e yang, como filosofia de equilíbrio dinâmico dos opostos que se complementam, Takeko, ainda adolescente, passou a instrutora de artes marciais tendo, com apenas 20 anos, sido nomeada comandante de uma formação de mais de 100 mulheres guerreiras que constituíam a defesa pessoal do séquito de nobreza feminino da casa de Aizu.
Assumir-se como mulher, independente, numa sociedade fechada, implicava uma tarefa de resistência diária onde ganhava dimensão o escárnio e o desprezo a que as mulheres eram votadas quando assumiam funções exclusivamente masculinas. Desde sempre, o homem, cujo carácter seja duvidoso, utilizou a agressão psicológica e as práticas desleais como um meio de expurgar os seus próprios receios sociais e a sua incapacidade em constatar e aceitar a diferença.
Takeko nunca se intimidou com os seus pares e revelou qualidades heróicas na guerra que opôs os grandes senhores feudais ao Imperador. Na batalha de Aizu, na guerra que ficou conhecida como "Guerra Boshin”, Takeko perdeu a vida aos 21 anos tendo pedido á sua irmã para a enterrar junto a um templo, à sombra de um pinheiro, num lugar de oração, em nome de todos os que lutaram a seu lado.
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