27.10.12

Cantino - O espião dos Descobrimentos

Planisfério de Cantino - 1502
Chamam-lhe a segunda profissão mais antiga do mundo. Cantino, espião italiano que se deslocou a Lisboa, pelo ano de 1502, foi incumbido, a soldo do Duque italiano de Ferrara, de subornar um cartógrafo português para que lhe efectuasse uma reprodução do grande planisfério das cartas reais de navegação, tesouro guardado a sete chaves, na Casa da Guiné e da Mina. As cartas de navegação constituíam segredo de Estado, sendo a sua divulgação a estrangeiros punida com pena de morte. "State of the art" da cartografia do mundo novo, na sequência das descobertas de África, Índia e Brasil, cada nova expedição envolvia um conjunto de figurantes que desempenhava um papel predominante na cartografia nacional. Pilotos, comerciantes, militares e religiosos ao serviço do reino, tinham por missão indagar, junto dos mercadores e viajantes locais, sobre a topologia dos lugares, ao longo da costa e terra dentro, de modo a anexa-los ao universo dos territórios descobertos. Dessa informação dependiam as novas inscrições no grande planisfério, que ia tomando os contornos do mundo, no local que concentrava todos os esforços dos Descobrimentos e da marinha portuguesa, junto ao Paço da Ribeira, no que é hoje o torreão poente do Terreiro do Paço. Cantino, conseguiu infiltrar-se e, a troco de 12 ducados de ouro, obteve uma reprodução das praças fortes, dos portos, das expedições e, principalmente, das rotas comerciais marítimas portuguesas para a Índia, que haviam despojado os mercadores italianos do comércio terrestre com o Oriente. Anunciado o êxito da missão a Hércules I d'Este, duque de Ferrara e Modena, Cantino regressou a Itália com o novo planisfério e com a descoberta do novo continente das Américas, dois anos antes, por Pedro Álvares Cabral representado por árvores verdes e douradas, arbustos azuis e por papagaios de cor predominantemente encarnada. A espionagem produz sempre lesões irreversíveis, tendo o acto de Cantino contribuído para a perca da guerra comercial, diplomática e científica de D. Manuel I, quando Portugal ainda julgava que a supremacia dos mares e o comércio estratégico das especiarias se iria manter por período muito superior aquele que, efectivamente, nos proporcionou uma curta hegemonia no panorama mundial. 

Caído no esquecimento, o planisfério de Cantino permaneceu por três séculos em parte incerta até que, em 1859, o director da Biblioteca de Modena, o italiano Giuseppe Boni, entrou numa salsicharia. Ao examinar o estabelecimento, os seus olhos pousaram num antigo pergaminho desenhado que servia de cortina. Negociou a sua aquisição e após um exame minucioso, o planisfério revelou tratar-se de uma das mais antigas cartas conhecidas, onde figurava a costa do Brasil e a linha do Tratado de Tordesilhas.  Conhecido como o planisfério de Cantino, em 2009, regressou ao local do crime, tendo estado em exposição em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga.

22.10.12

Henry David Thoreau - Walden ou a Vida nos Bosques

Henry David Thoreau (1817-62)
"O meu vizinho mais próximo fica a mil e seiscentos metros daqui, e não se avista nenhuma casa a não ser do alto da colina, a oitocentos metros da minha. Tenho o horizonte orlado de bosques e todo para mim; de um lado, a vista da longínqua ferrovia ao atingir o lago, da outra banda a da cerca que contorna a estrada da região florestal. Mas na sua maior parte o sítio onde moro é tão solitário como as pradarias. É tão Ásia e África como Nova Inglaterra. Tenho, por assim dizer, meus próprios sol, lua e estrelas, e um pequeno mundo só para mim. Nunca um viajante passou à noite pela minha casa ou veio bater-me à porta, quase como se eu fosse o primeiro ou o último dos homens;(…)" 

"Se como uma aranha eu fosse confiado a um sotão pelo resto dos meus dias, o mundo para mim seria imenso desde que estivessem comigo os meus pensamentos". 


É curioso quando iniciamos a leitura de um livro e de repente, como se o imprevisível estivesse ao virar de cada página, sentimo-nos identificados com as descrições, a filosofia, a linguagem, as emoções e os sentimentos do autor. Com a convicção de um princípio divino, no interior de cada homem, e defendendo o direito ao sancionamento individual nas questões da fé, Thoreau, um dos percursores do Transcendentalismo, conta-nos, em modo auto-biográfico, o retiro que efectuou, por opção própria, durante dois anos, nas margens do lago Walden, nos arredores de Concord, Massachusetts.

Entregando-se à contemplação, o autor adoptou uma prosa nitidamente metafórica expondo, de forma admirável, o intimismo reflexivo que desenvolveu consigo próprio e as considerações que teceu sobre o mundo natural que o rodeava. Zelando em exclusivo pela sua subsistência, Thoreau foi criando vínculos, superando o isolamento e quebrando as barreiras naturais que se levantavam à sua permanência num meio desconhecido e hostil. Estabeleceu relações com os animais, as árvores, a chuva, os lagos, as distâncias, as estações, o sol e a lua, a noite e o dia. Laços que o ajudaram a compreender o silêncio da floresta, afinal cheia de ruídos conhecidos, como o "canto dessa ave forasteira celebrado por poetas de todos os países" ou "uma gralha azul gritando estridente à janela" da casa construída pelas suas próprias mãos. 
"Em vez de frequentar um erudito, fiz muitas visitas a certas árvores, de espécies raras nas circunvizinhanças, dessas que se isolam no meio de uma pastagem, no coração de um bosque ou de um pântano, ou no cimo de uma colina" 

Lake Walden - Concord - Massachusetts
Thoreau aligeirou as diferenças e enalteceu as semelhanças. Quebrou fronteiras e amenizou a solidão que poucas vezes sentiu, como refere numa das suas passagens do livro. Não tendo natureza de ermitão Thoreau eleva os aspectos individualistas da existência humana, inspirando-se na ênfase Platónica do sujeito e na hegemonia da natureza sobre a sociedade. Refugiando-se num mundo feito à sua medida, natural e transparente, com o qual estabelecia diálogos, exaltava a mente, desenvolvia capacidades reflexivas e produzia poesia, Thoreau, num ecletismo romântico, desafiou os jovens que se acercavam da floresta, para pescar e caçar, a deporem os seus instrumentos bélicos e a dedicarem-se à introspecção do seu mundo individual, tendo como premissa que 
"Todo o homem é senhor de um reino ao lado do qual o império terrestre do Czar é apenas um estado minúsculo, um montículo deixado pelo gelo". 

Thoreau enalteceu a capacidade para apreender a verdade, preconizando a consciência como guia moral e a inspiração como fonte criadora da literatura. Herdeiro tardio do optimismo de Rousseau, a sua influência viria a ecoar nas filosofias de resistência passiva de desobediência civil, das quais os movimentos de independência e equidade social, liderados por Gandhi e Martin Luther King, respectivamente, são os exemplos de maior sucesso, num conturbado séc:XX.

19.10.12

Michelangelo - O Regresso às Origens

Moisés - 1513/15 - Michelangelo
Depois de dedicar quatro anos da sua vida ao tecto da Capela Sistina, Michelangelo regressou, finalmente, ao martelo e ao cinzel, com ganas de recuperar o tempo perdido. Saudoso dos grandes blocos de mármore, que tinha deixado em suspenso no estaleiro da nova Basílica de São Pedro, Michelangelo, com uma explosão de energia criativa, atirou-se a seis grandes nus masculinos e a Moisés, o colossal profeta judeu que ficaria no centro do monumento funerário dedicado ao papa Julius II. Pioneiro no estilo non finito, que levaria mais tarde a sua chancela, Buonarroti antecipou os movimentos cubistas e impressionistas do futuro, dando um aspecto inacabado às suas esculturas, explorando conceitos que o colocaram na vanguarda renascentista. Minimizando a decoração e os trajes das suas obras, Buonarroti explorou os drapeados e os nus, produzindo peças que eram reflexo de um conjunto de princípios e ideias relacionadas com a formação multidisciplinar que recebeu na corte dos Médicis, em Florença. 

Conciliando duas culturas com origens comuns, Michelangelo projectou a estátua de Moisés, para o coração da Basílica de São Pedro. Moisés, o profeta que contactou com Deus no Monte Sinai, foi aquele que atingiu o mais alto nível de espiritualidade e a quem foram confiadas as Tábuas da Lei. Tocado por Deus, a sua face irradiava uma luz divina o que o obrigou a usar uma máscara para não ferir os olhos dos seus irmãos israelitas. Animado pelo fascínio que sentia pelas estórias do Antigo Testamento, Michelangelo representou Moisés com o seu dom profético, animado pela visão do futuro longínquo da humanidade. Adoptou para isso a mesma técnica utilizada em David, afastando ambos os olhos e aprofundando-os obtendo um resultado etéreo, com o profeta fixo no infinito, nunca fitando directamente o observador, seja qual for a posição em que se encontre dentro da Basílica. Buonarroti dedicou-se de corpo e alma a esta obra. Quando a concluiu, diz-se que o seu realismo era tal que Michelangelo colocou as mãos nos ombros do profeta e lhe gritou: "Fala, caramba, fala!", como se às pedras se desejasse instigar o dom da vida.