30.5.14

Amigos

E os amigos antigos reaproximam-se. Partilham conversas em ondas fugazes. Mergulham nas cumplicidades navegáveis, na suave batida que circunda os dias, no surrealismo aqui e ali de portas abertas, no clamor da uma alegria viciada de talento, no inventário de emoções que estreitam as circunstâncias dos ínfimos bandos de palavras que nos unem num arco incomensurável, pleno. Extasiados. Perplexos. Voos matizados de cores suaves. Esvoaçar ameno. CRV

27.5.14

Cinema - Segundas à noite


Muita poesia, uma bela metáfora sem consequência, uma sugestão, uma insinuação, o tema, as formas cénicas, o sorriso forçado, o aparato ventoso, o preciosismo formal, o processo físico, a redenção espiritual, o niilismo inconsequente, a conclusão. 

Cá fora, a vida não é uma ficção, muito embora todos os sonhos possam caber no repouso tranquilo de mil metáforas em cascata.

26.5.14

Index Librorum Prohibitorum

As chamas contam sempre a história surda daqueles que ousaram agitar as escoras do sistema. Muito antes de 1515, quando o Concílio de Latrão exorcizou a censura prévia generalizada, incinerando todos os volumes que a imprensa diabólica se apressou a distribuir pelas mãos dos leigos, já a História nos tinha dado inúmeras provas do temor dos que detêm o poder quando surgem vozes dissonantes que põem em causa as fundações obsoletas do sistema.
Quando leio sobre as 10 maiores queimas de manuscritos da História, é impossível evitar a melancolia do imenso património que se perdeu nas colunas de fumo das fogueiras. Na origem destes actos irracionais, encontram-se motivações várias, todas elas absurdas à luz da cultura, da paixão pelos livros e da iluminação dos espíritos. Papiros, manuscritos, livros, bibliotecas e, não raras vezes, os próprios autores, acusados de traição, incitação à rebelião, bruxaria ou condutas contrárias aos cânones da pureza ariana ou da fé da Santa Igreja. Noutros casos, a destruição justificou-se como um impulso de modernização e o corte radical com as ideias e a ética das gerações passadas. Os papiros éticos destruídos na dinastia Chin, os abolidos por Akhnatón, contendo 75% da literatura do Antigo Egipto, a destruição da Biblioteca de Alexandria por ordem de Amr ibn al-As, as fogueira nazis e da Inquisição, Henrique VIII e a purga do catolicismo nos mosteiros, a censura de Savonarola e tantas outras que ocorreram em nome da sincronização da cultura com ideais conjunturais de vistas estreitas sem preocupação com os legados futuros.
Na Europa, a institucionalização da censura inquisitória esteve directamente relacionada com a disseminação da cultura pelos canais promovidos pela imprensa. A saída dos livros do ambiente claustrofóbico dos mosteiros para as mãos dos leigos, promoveu a criação das primeiras bibliotecas privadas e, paradoxalmente, a criação das primeiras listas de livros proibidos, como o Index de Paris, em 1544, que procurava expurgar das mãos da sociedade os livros heréticos, contrários aos bons costumes católicos e aos princípios científicos fundados nas teorias egocêntricas da Terra e da Santa Igreja.

Apesar da censura ter sido sempre uma patrulha cautelosa que procurou antecipar os canais de distribuição, passeando-se pelo meio das gentes, criando listas de livros proibidos e elegendo aqueles que se destinavam à aniquilação, a verdade é que, por acção da imprensa houve sempre uma resistência erudita à categorização inconsequente dos livros malditos e à entrega voluntária de cópias destinadas à destruição. As queimas nunca mais eliminaram por completo os originais, passando antes a ter um carácter simbólico junto dos solstícios sociais que se opunham ao pensamento hermético e retrógrada preconizado pela conjuntura política ou religiosa instalada do momento. Foram assim as queimas nazis de autores como Thomas Mann, Freud, Einstein ou Marx quer pela sua ascendência judaica, quer pelo facto de não se encontrarem de acordo com os padrões impostos pelos ideais do III Reich, mas foi assim, igualmente, a queima do livro de Wilhelm Reich "Revolução Sexual", acusado de pornografia, pelo Departamento de Estado Americano, pelas suas contribuições sobre as teorias do orgasmo.

Sob as mais variadas formas, discretas ou camufladas, a censura continua ainda em diversos sistemas políticos a actuar como a sombra inevitável do poder, procurando a manutenção do status quo, evitando novos olhares e novas concepções do mundo que se destaquem e se isolem pela sua originalidade e cumplicidade com alguns sectores da sociedade. Restituir ao mundo aquilo que nele existe, deslocando o olhar humano para as coisas singulares, revestindo-as de uma nova fórmula, atraente, multidisciplinar, é um combate contra a cegueira e uma correspondência com a crença de que tudo é mutável perante os mesmos factos, nunca devendo ficar aprisionadas ou resignadas qualquer conjunto original de ideias.

11.5.14

O silêncio. A estética. Os caminhos.

Wittgenstein
"Deitada de costas na tijoleira quente da Piazza del Campo, olho o azul altíssimo sem nuvens, conto os pássaros que cruzam o meu bocado de céu, sentindo a brisa reconfortante do mês de Julho. São quatro da tarde. O sol corre lento por detrás do Palazzio Publico e da Torre de Mangia projectando as suas sombras imponentes no chão do largo, aproveitadas por muitos para a pausa tradicional nas caminhadas pelas artérias da cidade que acabam sempre por convergir, para este ponto de encontro". CRV

Podia ser mais um relato de viagens por esse mundo fora, um recortar de um estado de espírito, um momento de tranquilidade, uma pausa na vida a escutar o silêncio. Quantas vezes é o silêncio de alguém interpretado como apatia, pobreza ou insuficiência de ideias, falta de recursos de formas estilísticas ou de escrita. Será falta de capacidade de expressão, obliteração do pensamento ou simples recusa de produção? Será mais um Bartleby, escrivão de Melville, que opta pelo "I would prefer not to"? 
O silêncio pode ser um meio estético, exigente, meio para atingir um fim, uma solução, uma clarividência, uma reconciliação entre pensamento e linguagem, um exercício exegético à qual o indivíduo se entrega e que corresponde a uma forma de atmosfera densa interior onde se degladiam os seus palcos de vida. 

Numa carta ao editor Ludwig von Ficker, sobre o seu livro "Tratactus", Wittgenstein afirmava: "O sentido do livro é ético. Quis, em tempos, incluir no prefácio uma frase, que de facto não está lá, a qual vou aqui escrever, para que possa ser só por si uma chave de trabalho. Assim, o que eu queria escrever era: o meu trabalho consiste em duas partes - a que está presente e a que não escrevi. E é precisamente esta segunda parte a mais importante. Traço os limites à esfera ética a partir do interior do meu livro e estou convencido ser essa a única forma rigorosa de traçar esses limites. Em suma, acredito, que onde hoje muitos sussurram consegui no meu livro através do silêncio colocar tudo no seu lugar(…)". 

O silêncio de Wittgenstein é relativo a uma acção fundamental, porque não é passiva ou indiferente, antes confere, àquele que se cala e àquilo que se silencia, o valor que resulta de uma correcta e prolífica actividade reflexiva. Igualmente não se trata de argumentar que a escrita nos trai ou que nos merece desconfiança pelas interpretações duvidosas que suscita. Trata-se antes de mais, de considerar que o melhor caminho é aquele que cala e que encontra, no quadro das opções que se apresentam, a melhor preposição estética. Será aí que, enfim, encontraremos a melhor forma de enquadrar a vida. A nossa derradeira opção ética.