As chamas contam sempre a história surda daqueles que ousaram agitar as escoras do sistema. Muito antes de 1515, quando o Concílio de Latrão exorcizou a censura prévia generalizada, incinerando todos os volumes que a imprensa diabólica se apressou a distribuir pelas mãos dos leigos, já a História nos tinha dado inúmeras provas do temor dos que detêm o poder quando surgem vozes dissonantes que põem em causa as fundações obsoletas do sistema.
Quando leio sobre as 10 maiores queimas de manuscritos da História, é impossível evitar a melancolia do imenso património que se perdeu nas colunas de fumo das fogueiras. Na origem destes actos irracionais, encontram-se motivações várias, todas elas absurdas à luz da cultura, da paixão pelos livros e da iluminação dos espíritos. Papiros, manuscritos, livros, bibliotecas e, não raras vezes, os próprios autores, acusados de traição, incitação à rebelião, bruxaria ou condutas contrárias aos cânones da pureza ariana ou da fé da Santa Igreja. Noutros casos, a destruição justificou-se como um impulso de modernização e o corte radical com as ideias e a ética das gerações passadas. Os papiros éticos destruídos na dinastia Chin, os abolidos por Akhnatón, contendo 75% da literatura do Antigo Egipto, a destruição da Biblioteca de Alexandria por ordem de Amr ibn al-As, as fogueira nazis e da Inquisição, Henrique VIII e a purga do catolicismo nos mosteiros, a censura de Savonarola e tantas outras que ocorreram em nome da sincronização da cultura com ideais conjunturais de vistas estreitas sem preocupação com os legados futuros.
Na Europa, a institucionalização da censura inquisitória esteve directamente relacionada com a disseminação da cultura pelos canais promovidos pela imprensa. A saída dos livros do ambiente claustrofóbico dos mosteiros para as mãos dos leigos, promoveu a criação das primeiras bibliotecas privadas e, paradoxalmente, a criação das primeiras listas de livros proibidos, como o Index de Paris, em 1544, que procurava expurgar das mãos da sociedade os livros heréticos, contrários aos bons costumes católicos e aos princípios científicos fundados nas teorias egocêntricas da Terra e da Santa Igreja.
Apesar da censura ter sido sempre uma patrulha cautelosa que procurou antecipar os canais de distribuição, passeando-se pelo meio das gentes, criando listas de livros proibidos e elegendo aqueles que se destinavam à aniquilação, a verdade é que, por acção da imprensa houve sempre uma resistência erudita à categorização inconsequente dos livros malditos e à entrega voluntária de cópias destinadas à destruição. As queimas nunca mais eliminaram por completo os originais, passando antes a ter um carácter simbólico junto dos solstícios sociais que se opunham ao pensamento hermético e retrógrada preconizado pela conjuntura política ou religiosa instalada do momento. Foram assim as queimas nazis de autores como Thomas Mann, Freud, Einstein ou Marx quer pela sua ascendência judaica, quer pelo facto de não se encontrarem de acordo com os padrões impostos pelos ideais do III Reich, mas foi assim, igualmente, a queima do livro de Wilhelm Reich "Revolução Sexual", acusado de pornografia, pelo Departamento de Estado Americano, pelas suas contribuições sobre as teorias do orgasmo.
Sob as mais variadas formas, discretas ou camufladas, a censura continua ainda em diversos sistemas políticos a actuar como a sombra inevitável do poder, procurando a manutenção do status quo, evitando novos olhares e novas concepções do mundo que se destaquem e se isolem pela sua originalidade e cumplicidade com alguns sectores da sociedade. Restituir ao mundo aquilo que nele existe, deslocando o olhar humano para as coisas singulares, revestindo-as de uma nova fórmula, atraente, multidisciplinar, é um combate contra a cegueira e uma correspondência com a crença de que tudo é mutável perante os mesmos factos, nunca devendo ficar aprisionadas ou resignadas qualquer conjunto original de ideias.
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