12.11.12

Esperança - A esquiva mortal

"Já noite fechada, quando atravessava os bosques de regresso a casa, com a minha fiada de peixes e a vara de pescar a arrastar, vi de relance uma sorrateira marmota cruzando o caminho, e senti um frémito de prazer, estranho e selvagem, tentando-me fortemente para agarrá-la e devorá-la crua; não que eu tivesse fome naquela hora, mas desejava a selvejaria que ela representava. Acontece que uma ou duas vezes, quando vivia perto do lago, dei por mim a explorar os bosques num estranho abandono, como um cão de caça faminto em busca de algum veado para devorar. As cenas mais bárbaras tinham-se tornado incrivelmente familiares que para mim nenhum bocado de carne poderia ser demasiado selvagem." 
Henry David Thoreau in Walden ou a Vida nos Bosques 

Bullying
Tinha uma expressão angustiada, como um animal assustado que esperava a qualquer momento uma investida vinda do nada. Franzino, de silhueta ultrapassada, era o mais pequeno da turma, por isso procurava protecção junto de dois mais altos que lhe prometiam algum conforto, na infinita jornada diária. Tinha o cabelo castanho, com jeitos ondulados, que lhe pendia desde um risco ao meio, dando à sua cara ovalada um ar de desespero infantil. Os olhos, castanhos avelã, ficavam frequentemente enevoados, pela humidade das lágrimas presas que surgiam, numa aflição que não conseguia controlar. As mãos, pequenas, desapareciam por dentro das mangas compridas como se procurasse dentro de si uma dignidade desde há muito perdida e que pulsava ansiosa por voltar. Criado pelos avós, o Henrique envergava sempre um tipo de roupas desajustadas aos padrões selectivos do Colégio. Por todo o conjunto foi sendo marginalizado em crescendo. Depois humilhado. Por fim, agredido. Restavam-lhe dois colegas, os mais altos da turma, aqueles que considerava seus protectores. Mas nem sempre estavam por perto. 

Diariamente, arrastava-se para as aulas engolindo todas as chamas de alegria, cedendo a uma angústia que lhe doía no peito, como um tronco cravado sobre os ombros. 
Passava a maior parte do dia enroscado sobre si mesmo. Nas aulas, só falava quando interpelado e as respostas eram tímidas, movidas pelo pânico que a sua voz estilhaçada ferisse quem se encontrava em redor. Nos recreios, procurava sempre os recantos escuros de modo a evitar que tropeçassem na sua sombra ambigua. Quando acontecia, tudo parecia iniciar-se como uma brincadeira inocente. 
Aos primeiros empurrões, vindos não se sabe de onde, seguiam-se as rasteiras, as quedas, o levantar, o voltar a cair, o pontapear, o furto da pasta, o despejar do seu conteúdo no lixo, o dinheiro que desaparecia, o saldo do telemóvel que acabava, as mensagens agressivas, a escuta das conversas, a leitura das mensagens particulares, a tortura gratuita, a gravação dos gritos, a audição e o riso sádico, a hostilidade permanente, o sadismo, os bicos do compasso nos braços e nas pernas, a armadilha, o caos, a memória lamacenta, a dor, o sofrimento, a solidão. 

A secura da boca dizia-lhe que a frescura da tarde se tinha transformado num naufrágio sem regresso. O seu destino estava, irremediavelmente, condicionado pela lei iníqua que o rodeava, adoptada pela maioria, como uma traição à sociabilidade natural. Na escola, a opressão dos colegas obedecia a uma estratégia destrutiva. Para ele, para o seu pequeno mundo, convergiam todas as aflições dos oprimidos, sendo-lhe insuportável a postura de indiferença que lhe era pedida, o heroísmo atribuído, a conformação com a exclusão, a complacente aceitação da humilhação. 

Certo dia, acordou com as mãos húmidas. Tremiam-lhe os dedos e o seu corpo era um palco de emoções controversas. Respirava com dificuldade, sem saber se era do frio ou da pressão que desde há muito sentia mas que agora o abandonava como um peso que lhe tiravam de cima. Acordou transfigurado. Como uma personagem de um acto predestinado. Como se tivesse passado por uma metamorfose ou vencido uma luta, trágica, subtil. Arranjou-se e efectuou o percurso até à escola. Quando aí chegou, determinado, sem angústias nem desassossegos, liberto de todas as temáticas de exclusão, segurou o telemóvel e digitalizou uma mensagem aos dois colegas mais próximos: 

- " Fiz o favor de facilitar o caminho da esperança". 
Esse, foi o primeiro dia do Henrique na escola nova.

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