11.10.11

J.M. Coetzee para a posteridade

"Meteu os seus haveres no casaco preto, esgueirou-se silenciosamente para o exterior do acampamento e ocultou-se atrás da cisterna, aguardando que fossem todos para a cama e as últimas cinzas se apagassem, até que tudo mergulhou em silêncio, à excepção do vento que soprava sobre a planície. Esperou mais uma hora, tremendo de frio, por não fazer qualquer movimento. Depois, descalçou os sapatos, pendurou-os ao pescoço, deslizou na ponta dos pés até à cerca de arame junto às latrinas, atirou a trouxa para o outro lado e trepou. Houve um momento em que, ao transpor a barreira, as calças se lhe prenderam no arame farpado e ele foi um alvo fácil no céu azul prateado, mas desembaraçou-se e seguiu em bicos de pés num chão surpreendentemente igual ao do acampamento.
Deambulou a noite toda, sem cansaço, tremendo, por vezes, de excitação de se sentir livre. Quando amanheceu, afastou-se da estrada e penetrou em campo aberto. Não encontrou qualquer ser humano; porém, mais uma vez, assustou-se com o  repentino salto de um veado em correria para as colinas. A erva seca, amarelada, ondulava ao vento; o céu era azul; o seu corpo recobrava o vigor. Vagueando num passo incerto, passou por uma e outra quinta. A paisagem era tão deserta que não custava a crer, por vezes, que ninguém antes dele palmilhara aqueles caminhos ou pisara aquelas pedras. De longe em longe, no entanto, havia uma cerca a lembrar-lhe que não era apenas um infractor, mas também um fugitivo. Passando pelos cercados e muros, sentia o prazer de um artesão ao escutar o zumbido do arame que, ao esticar-se repercutia. Porém, não conseguia imaginar-se a passar a vida a plantar estacas, levantar barreiras, dividir as terras. Não se via como algo pesado que deixa rasto no chão à sua passagem, mas, a ser qualquer coisa, como um grão de areia à superfície de uma terra adormecida demasiado profundamente para ouvir os pés de uma formiga, o ruído dos dentes de uma borboleta ou o cair do pó".
J.M.Coetzee in "A Vida e o Tempo de Michael K." - Dom Quixote

São livros como "A Vida e o Tempo de Michael K" que permitem estabelecer alguma relação entre a reclusão voluntária, a solidão e a  meditação que têm pautado a vida de Coetzee. Michael K., vê-se, após a morte da mãe sózinho num mundo anárquico regido por militares errantes e violentos. Aprisionado, Michael é incapaz de tolerar a reclusão e foge, determinado a viver com dignidade. É um romance de afirmação da existência que vai à essência da experiência humana, evocando a necessidade de uma vida interior, espiritual, com algumas ligações ao mundo em que vivemos, vocacionada para a pureza do seu entendimento. Foram livros como este que deram a Coetzee o duplo Booker Prize, em 83 e 99, e o Nobel, em 2003. É por isso com agrado que li a notícia, ontem divulgada pelo New York Times, da aquisição,  pela biblioteca da Universidade do Texas - a Harry Ransom Center - dos manuscritos de J.M.Coetzee, facto que só vem reafirmar o interesse, para as futuras gerações, do espólio do escritor. A curiosidade reside na coincidência, desta mesma biblioteca ter sido o local onde Coetzee procedeu à investigação, para a sua tese publicada, sobre o primeiro período da obra de Samuel Beckett.

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