9.10.11

À Porta da Lei

Um homem do campo aproxima-se de um guarda e pede-lhe para “entrar na lei”. O guarda veda-lhe a passagem e diz-lhe que: «De momento não é possível, talvez mais tarde». O homem pensa um pouco e decide ficar à espera. Como a porta para a lei se encontrava entreaberta, o homem curva-se, frequentemente, para poder olhar lá para dentro. O guarda ao vê-lo acha-lhe piada e diz: «Se estás assim tão curioso, tenta entrar, apesar de eu to proibir. Mas nota bem: EU SOU PODEROSO. E sou só o mais humilde de todos. De sala em sala há outros guardas, cada um com mais poder que o anterior». Como o homem do campo não esperava encontrar tamanhas dificuldades, uma vez que pensava que a lei deveria ser acessível a todos, hesitou sobre o que deveria fazer. Olhou para a fisionomia do guarda. Era grande, corpulento, de nariz adunco, barba negra, à tártaro, pelo que decidiu que seria melhor esperar até ter autorização para entrar. O guarda deu-lhe um banquinho para se sentar. E o homem ficou ali sentado, à espera. Dias. Anos. Durante o tempo que esperou sentado, ambos trocaram alguma conversa de circunstância. Falaram de onde vinha, como era a sua terra, enfim, conversaram só por conversar, como fazem os guardas só para passar o tempo. Mas a conversa terminava sempre com o guarda a dizer-lhe que ainda não era altura de ele entrar. O homem, que tinha trazido consigo muitos objectos, tentou frequentemente subornar o guarda. Desde objectos valiosos à música, tudo lhe servia de estratagema para levar a sua adiante. Porém, o guarda aceitava tudo o que o homem lhe dava, mas ía logo dizendo: «Só aceito para não ficares com a impressão de teres perdido alguma oportunidade». Durante muitos anos o homem permaneceu sentado na porta da lei. À espera. Observou minuciosamente o guarda, estudou-lhe os gestos, as falas, os trejeitos, as pulgas do seu casaco, o seu tamanho colossal. Por fim, amaldiçoou o seu infeliz acaso. Com os anos, foi envelhecendo, enrolado em amargura e azedume. Em redor, o mundo ficou mais escuro e a luz dos seus olhos enfraqueceu, apenas conseguindo vislumbrar a luz que irradiava de dentro da porta da lei. Já para o fim, quando já não lhe restava muito tempo de vida, achou que nunca tinha colocado uma questão ao guarda. Com o corpo curvado e doente, faz-lhe um sinal para que se aproximasse. O guarda, curvou-se para ouvir o seu sussurro, porque a diferença de alturas, com o tempo, acentuou-se bastante, em desfavor do homem. Ao ouvido, perguntou-lhe: « Se toda a gente quer entrar na lei, como é que explica que, durante todos estes anos, além de mim, nunca ninguém tenha pedido para entrar aqui?» O guarda percebe que o homem está a morrer e responde-lhe: «Ninguém mais podia entrar por aqui. Esta entrada estava-te apenas destinada a ti. Agora vou fechá-la.»

Muito embora este conto de Kafka possa gerar inúmeras interpretações, nomeadamente se a entrada tão desejada é uma passagem para o Céu ou para o Inferno, ou se o homem de Kafka simplesmente consumiu a sua vida numa espera inútil, o que é facto, é que Panini refere que os Homens são expectantes, actuando como ilhas planetárias desterradas, passando uma terça parte da sua vida numa semi morte, outra gasta a fazer mal a si próprios e aos outros e a última esboroando-se e consumindo-se em expectativas. Começamos em crianças a desejar crescer, depois na adolescência aspiramos à independência e, por fim, na idade adulta, diversificamos as expectativas como braços de um polvo que pretendemos abarcar. A imaginação e o sonho são terrenos férteis que a paciência suporta mas que a consciência equilibra. Por vezes, o caminho das expectativas é longo, espinhoso, consumindo-nos as comportas da alegria. Contudo, haverá que não desanimar, como refere Panini, a desilusão em vez de conduzir à renúncia deverá incentivar novas expectativas, pois toda a vida do homem, apesar dos atrasos e dos adiamentos, não passa de um esperar pela nossa vida. A nossa vida. Como a queremos tomar e levar, como a queremos conduzir, sem a ninguém atender ou submeter, sem nos influenciar. Essas, são as premissas da liberdade individual. É dessas premissas que não haverá que ceder ou abdicar, nunca esquecendo que todo o sabor da vitória tem, no dia imediato, o mesmo sabor da derrota. Por isso, é pouco importante consumir-nos na espera de que outros desistam, ou alterem as suas expectativas uma vez que elas fazem parte do seu projecto de vida. Tal como o nosso. Importante será que esses projectos de vida não conflituem uns com os outros. A entrada pelas nossas portas, interfere com a nossa privacidade, e só será susceptível de ocorrer mediante convite. Caso contrário, quem desespera na espera, poderá ter sempre a tentação de ultrapassar a porta proibida. Eu e outros estaremos expectantes para que isso não aconteça. É, por isso mesmo, que a vida será sempre feita de expectativas.

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