25.4.10

O meu 25 de Abril de 1974

Acordei com o som da televisão. Estava atrasada para as aulas e corri para a sala. Encontrei o meu pai e a minha avó pregados na televisão a seguir atentamente as notícias. «O que se passa?» Lembro-me do meu pai responder em tom afável ”Hoje não há aulas, podes ir brincar”. Curiosa, decidi ficar por ali. Sentei-me a ver televisão mas recordo-me que eram as expressões de espanto, os comentários e as pausas de silêncio que cativavam o meu interesse. Pedi que me explicassem o que se passava e perguntei se era bom ou mau. As palavras revolução e golpe militar eram banais lá em casa. O meu avô, oficial do exército, republicano convicto, idealista, revolucionário, habituara a família às prisões e deportações militares para Timor, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, no quadro das conspirações em que participou, ao longo da ditadura, numa facção política não esquerdista mas adversa ao Salazarismo. Vivíamos em Campo de Ourique, num prédio que os meus avós compraram quando se casaram, em 1919, quando o bairro era um amontoado de olivais situado numa zona limítrofe de Lisboa. Era ainda pequena mas guardo na memória a sequência dos acontecimentos como se os estivesse a viver hoje. As notícias na televisão. As vozes fortes na rádio de Joaquim Furtado e Luís Filipe Costa, locutores do Rádio Clube. As músicas de intervenção e a Grândola Vila Morena passada repetidamente. A minha curiosidade levou-me frequentemente à janela. Tinha recomendações para não a abrir por isso encostei-me ao vidro para estar mais perto da rua. Populares corriam e gritavam que o Quartel do Rato, mesmo ali ao pé de casa, já estava tomado. Agitavam lenços brancos e procuravam reunir pessoas para se dirigirem ao Carmo. Muitos gritavam “Liberdade, Liberdade” num entusiasmo que me soava estranho pois achava que sempre tinha tido liberdade para fazer tudo o que queria. Na televisão, os tanques, a revolução pacífica, os cravos nas pontas das armas, o sorriso dos militares, as gentes que saudavam as câmaras e o mito do “orgulhosamente sós” que parecia que se desvanecia a cada momento. O dia foi longo e as opiniões lá em casa dividiam-se quanto ao rumo dos acontecimentos. Falava-se no fim de uma época, das perseguições, na liberdade que podia ser adquirida, nas consequências se alguma coisa falhasse, no futuro da governação. Findo o dia deitaram-me, já a noite ia longa. Tal como de manhã, continuei a ouvir ao fundo o som da rádio e da televisão até que caí num sono profundo. Não sei se sonhei com um futuro melhor, pois acho que ainda não tinha a noção do que era isso. O que é curiosa é a impressão que me ficou deste dia revolucionário, o “punctum” de que Barthes fala e que convergiu, claramente, não para os acontecimentos históricos que se desenrolavam lá fora, mas para todas as explicações que, cuidadosamente, me foram prestadas. Dotar uma criança da informação necessária, de modo a percepcionar o seu mundo em transformação revelou-se determinante para a minha compreensão dos acontecimentos. Direitos, liberdades e garantias. Quem sabe se não começou aí o meu interesse pela igualdade e justiça para todos.

4 comentários:

HELENA AFONSO disse...

OLÁ CRISTINA, obrigada por ter partilhado conosco o seu "dia da LIBERDADE". Para mim, que já voava foi algo de diferente mas também inesquecível! O nosso avião - Boeing 707 foi o ultimo a descolar do aeroporto da PORTELA, eram já quazi 2 horas da manhã do dia 25 de Abril. Eu fechei a porta do avião e alguns minutos depois descolávamos com destino ao Rio de Janeiro. Foi um voo normal, ninguem, tripulação e passageiros, sabia que àquelas horas a revolução já se tinha iniciado em Portugal. Passadas 9 horas o avião aterrou no aeroporto do Galeão, parou os motores e eu novamente abri a porta do avião. Vi uma avalanche de pessoal de terra da TAP que avançou para mim gritando houve uma REVOLUÇÃO EM PORTUGAL"! Eu pensei que era brincadeira, mas logo a seguir após o Comandante aparecer na cabine de pax e anunciar que era verdade todos ficámos perplexos.
Fomos delirantes para o Hotel, em Copacabana, primeiro porque sabiamos que a nossa estadia se iria prolongar maistempo, depois porque logo dentro de nós nascia uma esperança, era uma nova era começava. Especialmente para nós mulheres, a nossa vida mais LIVRE estava a chegar, para começar foi logo instituido o direito às assistentes de bordo, até ali sempre reduzidas a executantes de cabine, a poderem escolher uma carreira como os homens e serem também chefes da cabine. A JUSTIÇA TINHA CHEGADO! Essa foi realmente uma grande conquista sob o ponto de vista da igualdade na hierarquia do trabalho.
Depois sofri grandes DISSABORES POR ERROS COMETIDOS POR AQUELES QUE TOMARAM O PODER, mas temos de aceitar que para se ganhar alguns direitos, temos também de perder outros......É A LEI DA VIDA!!

Beijinhos,

Olga disse...

It is very interesting to read your story about the significant day in the history of your country, TI - a day that has changed the life of all the people forever and there was no turning back (how I also wish to be a witness of such day in my own country, but I'm not too sure how old I will be when this day happens).

It is also a very big coincidence that today I am - just like you did yesterday - remembering another significant day for my country, which will stay in history for a long time and again there was no turning back from it. 26.04.1986 is the day of Chernobyl disaster, which affected the life of my city forever... Can you imagine that these days some researchers wonder why my city wasn't evacuated back then... maybe it was too big (500 000 people) - the biggest city affected, it's just 140km away from Chernobyl.. Anyway, all my life and childhood we've been heavily reminded about what happened, marked the anniversaries like today and took part in frequent radiological measurements as kids... I was only 4 back then, but I remember that day and how my mom was preoccupied and even what we were talking about, what I was asking her about what had happened... memory is a funny thing after all. I know I will remember this for my whole life - just like you do about April, 25..

Manifesto Surrealista disse...

Helena,
Obrigada por passar por aqui. O seu relato daria um excelente post para o seu blog, não acha? É curioso como cada um de nós viveu este dia tão significativo para o país. Achei fascinante o entusiasmo com que falou da empresa onde trabalhou toda a vida. Sei que foi uma excelente Chefe de Cabine o que honra uma das igualdades conquistadas com o 25 de Abril. A TAP tem aquele brilho mágico de continuar a ser uma das melhores empresas para trabalhar em Portugal. Leu a crónica do Miguel Esteves Cardoso sobre a TAP? Acho que exprime a opinião maioritária o que nos dá muito orgulho. Acho que percebe o que quero dizer :)Bjs

João Videira Santos disse...

...E todas as palavras tiveram o significado comum do sentido...

Liberdade!

Lembro esse dia como se desnudasse a verdade e feito dela um pássaro que libertei na raiva do primeiro grito...

Foi lindo!

Abri em cada mão um leque de lembranças e recordei todos aqueles com quem aprendi que não há nada que corte a raíz ao pensamento...

Lembrei todos aqueles que por se votarem à causa da liberdade sofreram a prisão, a tortura, o desterro...

Lembrei as mães que no sufoco do nada alimentaram seus filhos com o pão da esperança...

Lembrei todos aqueles que não viram a aurora desse dia e que caíram na valeta do esquecimento, como se fossem uma mera sombra refletida...

Falar desse dia na memória que dele guardamos (como é o seu caso) é ter vivido o momento único que tantos não viveram e de si, por ele, deram tudo!

Felicito-a pelo post e pela lembrança que dos seus guarda.