Algures na fronteira da Bosnia & Herzegovina com a Croacia...CRV© |
"A sinceridade é uma disposição natural para não admitir a mentira voluntariamente, mas para a odiar e acalentar a verdade"
Platão in República, VI
Há estradas que nos oferecem um inventário de experiências humanas articuladas entre a percepção da animalidade dos homens e a infeliz coincidência de estar no lugar onde todas as esperanças são ceifadas pela raiz, por mãos que são herdeiras do inferno de Hades, tingidas pela cor das trevas. A estrada que une Neum a Mostar, na Bosnia & Herzegovina, recorda uma história feita de ciladas e armadilhas, onde incautos habitantes tropeçaram desarmados, perdendo de um dia para o outro a luz dos seus sorrisos, a paz dos seus caminhos, a serenidade veiculada pelos profetas islâmicos e pelos santos cristãos em que acreditavam. Por vezes, a natureza do tempo não consegue apagar o sono profundo em que repousam as almas dos estropiados. Apesar dos 20 anos passados, sobre os conflitos da guerra dos Balcãs e da beleza de alguns monumentos que funcionam como manobra dilatória do percurso, aquilo que nos detém, como espectadores intrometidos, são os inúmeros recantos de terror que se desenham ao longo da estrada. Esses, são os locais que marcam, repetidamente, a chacina de famílias inteiras, mantendo entre silvas e ervas daninhas as ruínas dos bombardeamentos, dos tiros cobardes apontados às fachadas das habitações precárias, dos julgamentos sumários feitos à porta de casa, com direito a fotografias e campas funerárias cravadas no mármore negro, plantadas nos quintais da retaguarda. Por toda a região, as nuvens parece que diluem o sol de Agosto e um manto escuro abate-se sobre os nossos corações perante o abismo de algumas almas que assumem formas tão distorcidamente inexplicáveis.
Foi nesta estrada que recordei um episódio, ocorrido há uns anos atrás, quando uma amiga estagiária foi confrontada com a necessidade de representar e defender, numa oficiosa do tribunal criminal, uma família de refugiados, desta mesma guerra, acusados da falsificação dos seus documentos de identidade e passaporte.
Pai, mãe e filha de 7 anos, cristãos, tinham empenhado todas as suas poupanças na falsificação da sua identidade, de modo a fugirem ao genocídio que tinha recaído sobre amigos e vizinhos numa guerra com o rosto das partituras fúnebres de onde não se regressa para contar sobre os diálogos da morte. Pelo modo como se vestiam aparentavam pertencer a uma classe diferenciada. A formação superior e a sua capacidade económica promoveram a possibilidade de negociarem a sua liberdade. Foram detectados no aeroporto de Lisboa, em trânsito, vindos de Roma. A escala, um salto no tempo até ao destino final, prometia a vitória da sobrevivência e a materialização da continuidade da geração. Interrompidos pela justiça implacável, os refugiados foram presentes a juízo, com interprete, que procurava explicar o desnecessário inventário de razões porque uma família foge da promessa breve da sua sepultura e de uma guerra que não acautela excepções. As alegações de defesa foram efusivamente evocadas pela minha amiga, com equiparações aos refugiados da 2ª Guerra Mundial, aos motivos de estado de necessidade, às razões do bem supremo em causa, à não violação de qualquer norma para além daquelas que se circunscreveram às razões da fuga, plenamente justificadas, ao perigo eminente de permanecerem em solo hostil, face a uma política de genocídio que não atendia à cor, idade, religião ou valorização humana ou profissional. Perante a anarquia instalada, a fuga, por qualquer meio viável, só poderia ser um imperativo categórico justificável, não rezando a história passada que em cenários de guerra tenham sido os inocentes a responderem pelos expedientes de fuga utilizados. A justiça, inabalável nas suas premissas herméticas, marcou leitura de sentença para daí a um mês. Entretanto, os refugiados deveriam aguardar em liberdade, comparecendo no fatídico dia para que a espada de Demóstenes ditasse os próximos meses da sua vida. Um mês depois, a leitura da sentença foi proferida, não atendendo ao estado de necessidade ou à situação extraordinária de guerra. 10 meses de prisão prometida que, curiosamente, nunca foram cumpridos. Na mesma noite do julgamento, um mês antes, os três refugiados de guerra foram aconselhados a seguirem para Madrid, no primeiro comboio da noite. E daí, para parte incerta. Há tempos, tive a informação inacreditável que a Interpol ainda os procurava. Tinham localizado a sua última residência, na Europa do Sul, contudo, quando efectuaram uma busca, o local já se encontrava desabitado. Acredito que a pequena de 7 anos seja agora uma jovem com boas cores. Acredito que só as poderá ter, com o sol, a liberdade e os bons ares do mar e das ilhas que foram palco das grandes odisseias. Na fuga, as cidades mudam mas os corpos são eternos.
Pai, mãe e filha de 7 anos, cristãos, tinham empenhado todas as suas poupanças na falsificação da sua identidade, de modo a fugirem ao genocídio que tinha recaído sobre amigos e vizinhos numa guerra com o rosto das partituras fúnebres de onde não se regressa para contar sobre os diálogos da morte. Pelo modo como se vestiam aparentavam pertencer a uma classe diferenciada. A formação superior e a sua capacidade económica promoveram a possibilidade de negociarem a sua liberdade. Foram detectados no aeroporto de Lisboa, em trânsito, vindos de Roma. A escala, um salto no tempo até ao destino final, prometia a vitória da sobrevivência e a materialização da continuidade da geração. Interrompidos pela justiça implacável, os refugiados foram presentes a juízo, com interprete, que procurava explicar o desnecessário inventário de razões porque uma família foge da promessa breve da sua sepultura e de uma guerra que não acautela excepções. As alegações de defesa foram efusivamente evocadas pela minha amiga, com equiparações aos refugiados da 2ª Guerra Mundial, aos motivos de estado de necessidade, às razões do bem supremo em causa, à não violação de qualquer norma para além daquelas que se circunscreveram às razões da fuga, plenamente justificadas, ao perigo eminente de permanecerem em solo hostil, face a uma política de genocídio que não atendia à cor, idade, religião ou valorização humana ou profissional. Perante a anarquia instalada, a fuga, por qualquer meio viável, só poderia ser um imperativo categórico justificável, não rezando a história passada que em cenários de guerra tenham sido os inocentes a responderem pelos expedientes de fuga utilizados. A justiça, inabalável nas suas premissas herméticas, marcou leitura de sentença para daí a um mês. Entretanto, os refugiados deveriam aguardar em liberdade, comparecendo no fatídico dia para que a espada de Demóstenes ditasse os próximos meses da sua vida. Um mês depois, a leitura da sentença foi proferida, não atendendo ao estado de necessidade ou à situação extraordinária de guerra. 10 meses de prisão prometida que, curiosamente, nunca foram cumpridos. Na mesma noite do julgamento, um mês antes, os três refugiados de guerra foram aconselhados a seguirem para Madrid, no primeiro comboio da noite. E daí, para parte incerta. Há tempos, tive a informação inacreditável que a Interpol ainda os procurava. Tinham localizado a sua última residência, na Europa do Sul, contudo, quando efectuaram uma busca, o local já se encontrava desabitado. Acredito que a pequena de 7 anos seja agora uma jovem com boas cores. Acredito que só as poderá ter, com o sol, a liberdade e os bons ares do mar e das ilhas que foram palco das grandes odisseias. Na fuga, as cidades mudam mas os corpos são eternos.
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