Auschwitz - Birkenau |
A ideia de nos posicionarmos como espectadores da nossa própria vida gera a habilidade irónica de reduzir o tamanho das coisas, mitigando as dificuldades e perspectivando as contrariedades, sob um ponto de vista mais racional, que só o distanciamento provocado pode induzir. Este, foi o ponto de partida do discurso proferido por Gunter Grass, no âmbito das Conferências de Poética, na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main, quando lhe pediram que falasse de si e da sua obra. No pós-guerra, Gunter Grass fez parte do grupo de cem mil alemães que foram lançados em campos de prisioneiros de guerra pela sua proximidade maior ou menor com o regime deposto. Com apenas dezassete anos, e educado sob um daqueles dogmas inimigos da vida em que "a bandeira era mais do que a morte", o escritor fez parte da juventude hitleriana motivado mais pela fuga adolescente aos deveres escolares do que propriamente por uma qualquer convicção ou identificação com os ideais xenófobos do Terceiro Reich.
Depois da capitulação, sofreu do mesmo cepticismo que atingiu milhares de compatriotas seus quando, sob o efeito pedagógico dos aliados, foi bombardeado por uma quantidade esmagadora de fotografias de locais com nomes estranhos: Auschwitz, Treblinka, Bergen-Belsen ou Sóbibor. As imagens, retratavam pilhas imensas de sapatos, cabelos, óculos e cadáveres amontoados. A negação, haveria de se dissipar com os julgamentos de Nuremberga e a realidade exposta de Auschwitz passaria a ser sinónimo da monstruosidade dos homens, esgotando-se todas as justificações nos espectros cinzentos cujas bocas se amarravam à verdade do incompreensível.
A seguir ao horror, e à consciência mundial do genocidio, Gunter Grass é envolvido nas chagas típicas dos labirintos moralistas que eclodiram no país perante a catástrofe. Seria possível voltar a escrever depois de Auschwitz? O movimento que negava essa possibilidade, liderado por Theodor W. Adorno, foi espelhado num livro intitulado "Reflexões sobre a Vida Danificada" onde se concebe, pela primeira vez, Auschwitz como corte e fractura incurável da História da Civilização. Adorno, numa resposta irreflectida à catástrofe, nega a possibilidade de se voltar a escrever poesia, como se pretendesse proibir que os pássaros voltassem a cantar, ou que o céu fosse azul de dia e escuro como breu de noite. "Como se impõe um jejum implacável ao apetite voraz pela fantasia lírica"? Gunter Grass e um grupo de poetas alemães refutaram os pesos de chumbo que Adorno atraiu para o panorama literário alemão, optando por uma nova tábua de mandamentos que preconizava que a geração de Auschwitz só poderia ultrapassar o trauma, escrevendo. Escrever, mesmo que isso significasse renegar todas as medidas absolutas. O branco e o preto. Os tons do arco-iris. O riso, a felicidade e a alegria. Escrever, numa catarse que adoptava como regra o cinzento, glorificando todas as suas infinitas matizes.
Na querela entre Camus e Sartre, Gunter Grass optou por Sísifo. Partiu à descoberta do mundo, com "um amontoado de poemas cinzentos, uma camisa muda, poucos livros e discos", resumindo-se a sua bagagem a esses parcos pertences. Passou por praças evacuadas, onde o vento rodopiava tudo e "o pó se entranhava nos dentes" tomando-o um silêncio sepulcral que fazia parar o tempo e o seu pequeno mundo. As vidas danificadas, eram uma realidade perceptível por toda a Europa, e os primeiros poemas, anorécticos, tristes e cinzentos, como a pura cor das gentes,"faziam ginástica livre e sem rede" na imagem de uma solidão hostil carregada de culpa pelo oportunismo cínico dos acontecimentos. As felicitações, traziam-lhe o sabor amargo de boca que não chega aos mortos. Pesava-lhe o rosto da hipocrisia, o passado, as perdas, a ascendência, a vergonha e a percepção que Auschwitz constituiria, para sempre, um arco no tempo, bramido no silêncio daqueles sofrimentos que se escoram na memória.
Depois de Auschwitz. Depois de se provar que o mais brutal é tecnicamente possível. Depois de o extermínio perfeito ter comprovado a capacidade da espécie humana em se auto-destruir, Gunter Grass conclui que resta ao escritor "escrever sobre o tempo que passa". Sem sinais de arrependimento ou semanas de fraternidade. Com a imaginação intranquila que "corre o perigo de ficar sem ar". Auschwitz nunca poderia significar um fim. Antes sim, uma lição de resistência do género humano e, fundamentalmente, das motivações que nunca nos levam a desistir de nós próprios e dos nossos ideais. Por fim, sem dúvida, uma lição de Paz. CRV©
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