Michelangelo Buonarroti - Tecto da Capela Sistina
Profeta Zacarias - retratado como Julius II
David e Golias |
Quem já teve oportunidade de visitar o Museu do Vaticano sabe que, para chegar aos frescos de Michelangelo, é necessário percorrer uma via sacra de alas e corredores sem fim, admirar, sem tempo, centenas de obras que mereciam mais tempo de contemplação, subindo e descendo dezenas de escadas que revolteiam e serpenteiam as labirínticas entranhas do Vaticano. No final, somos compactados, numa fila impaciente, antes de sermos literalmente atirados para dentro da Capela Sistina, por uma pequena porta de sacristia onde os visitantes pressentem a eminência de uma excelsa revelação divina. Convergindo para a entrada somos confrontados com um céu azul universal. No tecto, as figuras bíblicas tomam forma, sacudindo o visitante com um frémito embasbacado como se de uma bala sagrada gatilhada por alguma força superior pairasse sobre as nossas cabeças. E é então que todos, em uníssono, deitam a cabeça para trás e escoram o corpo desequilibrado ao chão. E nem o altar-mor do Juízo Final com o Rei Minos condenado a viver com os genitais abocanhados por uma serpente venenosa nos distraem da harmonia celeste do Princípio dos Homens. Por cima, reencontramo-nos com as resignações do Velho Testamento. A Criação de Adão, o Pecado Original, as Síbilas, os medalhões, as grinaldas, os nus gigantes, os nus de bronze, os putti e os 7 Profetas, emoldurados pelos Quatro Cantos do Universo. Mas nem sempre foi assim.
No tempo de Michelangelo, a entrada na Capela Sistina fazia-se pela majestosa porta dos pontífices e não pela atarracada porta de sacristia, ao lado do altar principal. Hoje, o visitante não tem a perspectiva, nem o impacto, do santuário idealizado por Michelangelo. Com a nave à sua frente, o visitante mergulhava, progressivamente, nas imagens e numa profusão de símbolos, adquirindo uma visão orgânica da capela, onde o todo se complementava, numa carga sensorial que atarracava qualquer um, à medida que progredia por dentro do templo.
Judite e Holofernes |
Com 1.100m2, Michelangelo dissimulou, no maior fresco do mundo, mensagens perigosas, com uma técnica de prestidigitador. Combinando diferentes ingredientes, de forma inovadora, conseguiu distrair o espectador comum, das mensagens subliminares que se destinavam a criticar o poder de Roma. Por um lado, bajulou Julius II, por outro, amaldiçoou-o. Julius II foi um Papa controverso. Sobrinho de Sisto IV, herdou do tio a corrupção dos Della Rovere, a prepotência de Roma, o ódio aos Medici e o gosto pela opulência e pelas artes que valeram ao Vaticano a criação de um dos melhores museus de arte do mundo. Interessado em consagrar o nome e o seu prestígio para a posteridade, encomendou a Michelangelo o tecto da Capela Sistina, recomendando-lhe que retratasse Jesus Cristo, por cima do local onde normalmente se sentava. Curiosamente, Michelangelo, não só não o fez, como não colocou nenhuma figura do Novo Testamento no tecto. Ao invés, Michelangelo retratou, no local encomendado para Cristo, um dos profetas hebraicos mais messiânicos, escolhendo, curiosamente, Zacarias. De modo a apaziguar o seu mecenas, Michelangelo pintou o rosto de Zacarias à imagem de Julius II, vestindo-o com uma túnica azul-marinho e dourada, as cores tradicionais dos Della Rovere, o que certamente terá agradado ao egocêntrico papa.
Porque se terá Michelangelo recusado a retratar Jesus Cristo? A razão prende-se, provavelmente, com duas das profecias de Zacarias. A primeira, segundo as escrituras, atribui-se a Zacarias uma exortação feita ao clero do Segundo Templo de Jerusalém, apelando à modificação dos comportamentos corruptos e pouco espirituais, sob pena de as portas do Santuário poderem vir, no futuro, a ser derrubadas pelos inimigos, facto que, efectivamente, veio a ocorrer no ano de 70 d.C., com a conquista de Jerusalém pelos romanos. A segunda razão, prende-se com o facto de Zacarias ser o profeta da consolação e da redenção reivindicando a reconstrução do Segundo Templo de Jerusalém. À sua maneira, Michelangelo transmite-nos a corrupção existente no pontificado de Julius II, bem como o facto de rejeitar que uma cópia fiel do Templo seja efectuada numa cidade estrangeira, ao invés da sua reconstrução ocorrer na cidade prometida de Jerusalém. Nos quatro cantos do tecto, consagram-se 4 episódios bíblicos que representam quatro momentos determinantes de emancipação do povo judeu. Em relação aos gregos - Judite e Holofernes -, aos babilónicos - David e Golias -, - aos persas - a rainha Ester e Haman -, e aos egípcios - Moisés e a praga das serpentes -. Nos quatro cantos do Universo, dois homens e duas mulheres de relevo do Antigo Testamento, enunciam a força masculina associada à compaixão feminina, oferecendo-nos a representação da personificação humana e a harmonia sexual divina, num equilíbrio místico que, segundo a Cabala, é a chave da perfeição celeste. Quanto ao profeta Zacarias, não deixa de ser curioso observar de perto os dois anjinhos "putti" que o observam por detrás e que servem de figurantes com a função de murmurar ao observador os verdadeiros pensamentos do artista. Michelangelo, não nutrindo particular simpatia pelo papa corrupto, procurou deixar uma mensagem, secreta e subliminar, no suposto tributo a Julius II. Se repararmos com atenção, os putti, olhando por cima do ombro do profeta, observam o seu livro com despreocupação. Aparentemente alheios, um dos anjos apoia-se no outro fazendo, com a mão discretamente camuflada, "figas" o que, numa versão medieval, equivaleria nos dias de hoje a levantar o dedo médio a alguém ou, de uma maneira mais coloquial, "mandar alguém à merda". Num gesto, intencionalmente vago, a mensagem não podia ser mais clara.
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