O seu nome era Sónia. Sónia, como uma sombra. Uma sombra esguia, apagada, cabelos pretos, curtos e crespos, olhos pequenos, que se moviam rápidos como os de um cameleão, sempre a perscrutarem com receio as esquinas da insatisfação da vida. Os óculos também eram pouco atraentes. Contornavam-lhe a face marcada pelo acne e das tristezas da vida. Trajava sempre roupa antiquada, desadequada para os dias de hoje. Cada vez que a via, recordava-me os anos oitenta. Numa altura em que as freiras do meu Colégio queriam acompanhar os tempos revolucionários, dos precs e das manifestações partidárias, introduzindo a revolução no convento, quando decidiram trocar o hábito religioso por roupas mais desempoeiradas. Recordo que as mudanças não trouxeram nada de novo, às súplicas religiosas, pois a fisionomia traía-lhes sempre a carne imaculada que se escondia por baixo do espírito. A pose da Sónia, estava contagiada pela poliomielite. Em pequena, a doença tinha-lhe ceifado a articulação do lado direito do corpo tentando, como uma torre de Piza, disfarçar essa ambiguidade no andar contrariando a inclinação que, como um pêndulo, lhe empurrava o corpo para o lado errado do tempo. Passava por mim como uma floresta densa de emoções, agarrando os maços de correspondência que tinha para distribuir pelos gabinetes. A simpatia, ficava-lhe sempre presa entre um sorriso tímido, esboçado quase em ar de súplica que mal lhe deixava ver os dentes brancos por detrás de uns lábios finos. O aceno de cabeça reflectia uma saudação brusca, envergonhada, mas cordial. Articulava muito poucas palavras. As indispensáveis quando interpelada e, mesmo assim, sempre com receio que alguma coisa a agredisse. Acreditei sempre que se escondia por detrás de si mesma numa daquela paredes duplas que escondem as almas doridas num paradoxo inexpugnável de alguma dimensão desconhecida. Trabalhamos anos seguidos, rodeados por pessoas assim. Pessoas que são meras sombras, que nunca chegam a desenhar o arco-íris quando passam, nem lançam estrelas quando falam, numa apologia de despojamento que nos comove. Na verdade, só reparamos na sua ausência quando algo de trágico acontece e sentimos que todas as gotas do universo convergem como balas enfurecidas para o momento em que nos apercebemos. Vivemos e trabalhamos tão próximos de algumas pessoas mas, na realidade, tão distantes. É como se existissem outros universos e outras dimensões onde vagueiam seres diferentes que, por qualquer razão inexplicável, nunca realmente se cruzam. Fluxos que se ficam pelas fronteiras silenciosas do relacionamento interpessoal, ausentes, apenas cedendo aos caprichos das ritualizações. Poses quase metafísicas, como Emmanuel Lavinas lhes chamou, livres dos enredos das relações sociais e da intencionalidade de toda a participação social e humana. É curioso, que a entrada de um ano novo transporta-nos sempre uma carga de expectativas e desejos que não são mais do que as privações do ano anterior. No entanto, em relação a algumas pessoas essa tensão ficará irremediavelmente adiada. Por motivos trágicos. Subsistirá, apenas, a ausência de um ritual. Mero artifício, praticado por uma sombra, que nunca teve peso na respiração do tempo.
3.1.12
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4 comentários:
Delíciada fiquei ao ler este texto, tão bem escrito e que transcreve tão bem as Sónias das nossas vidas que não passam de sombras, que são impossíveis e indesejaveis ao "toque".
É sempre um prazer passar por aqui.
Teka
Obrigada por passares por aqui T. De facto, muitas destas personagens passam-nos ao largo, durante a vida. Quanto não haveria para explorar ou partilhar, nesses universos fechados que muitas vezes só estão há espera de um sopro de esperança para poderem eclodir? Bj T
O meu maior desafio, todos os dias, é "tocar" nessas Sónias feitas sombras e apresentar-lhes o SOL que também podem ser.
Ao ler o teu post, lembrei-me de uma sombra Sónia da minha vida que um dia escreveu um livro!
E há outras Sónias que nem mesmo eu me apetece "acordar", são sombras negras e escuras incapazes de se libertarem das trevas!
As Sombras e as Sónias levar-nos-iam longe nas conversas :-)
Gostei!
Teka
A tua profissão é fascinante. O maior desafio é conseguir ler o avesso dos outros.
Bj
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