8.2.11

Ana

Ana. O seu nome era Ana. Confessou-me que sentia medo. Medo quando ele chegava a casa. Medo das tareias. Medo das tesouras e das facas com que a ameaçava. O marido, chegava invariavelmente tarde a casa, geralmente, com um grau de alcoolemia elevado. Ana deitava-se cedo e fingia dormir para não o perturbar, ou então escondia-se num canto sombrio do quarto, que nunca era suficientemente escuro, para evitar as bofetadas, os murros na cabeça, os socos na barriga, os pontapés até quase perder os sentidos. Contactou-me lavada em lágrimas porque precisava de ajuda. Porque tinha medo. Aquele medo que se entranha no corpo e nos paralisa o raciocínio. Mas faltava-lhe iniciativa, vontade em actuar e de olhar para o agressor como uma injúria na sua vida, um placebo violento que lhe jurava há anos que seria sempre a última vez. O quadro era típico. Pluralidade indeterminada de actos parciais, que preenchiam o tipo de crime de ofensas à integridade física, bem como uma das variáveis do Síndrome de Estocolmo, que se manifesta nos casos de violência doméstica e familiar onde a mulher agredida continua a gostar e a defender o agressor, entendendo que as réplicas violentas fazem parte de um quadro de convivência familiar normal. A experiência dizia-me que nunca seria a última vez. Ana, apesar do medo, do pavor medonho da chegada do escurecer era a primeira a desculpá-lo: “Acho que não vale a pena ir à polícia. Esta manhã quando viu a minha cara disse que estava arrependido. Chorou, inclusivamente, agarrado a mim. Disse que sempre me amou muito e que a noite passada foi uma crise de ciúmes”. Ana enganava-se a ela própria. O marido, um ciumento agressivo, utilizava pela milésima vez argumentos inverosímeis para justificar o injustificável. Com tesouras cortava-lhe a roupa, com o argumento que não eram próprias e que as usava apenas para provocar os homens. Não a deixava usar o cabelo solto, maquilhar-se ou vestir qualquer peça de roupa que lhe marcasse o corpo. Ana era uma sombra de gente, um farrapo humano que se arrastava, humilhada pela perversidade de um cobarde, um tirano que a convencia que a culpa de toda essa tortura talvez fosse dela. Talvez fosse ela a culpada das agressões e da barbárie diária. Talvez não fosse suficientemente perfeita. Ana iria procurar melhorar. Todos os dia tentava melhorar para agradar ao agressor. Desapareceu. Perdi-lhe o rasto. Até ao dia em que me telefonou do hospital. Falava com dificuldade. Percebi que tinha sido agredida com gravidade. O relatório médico falava em braços partidos, escoriações e hematomas graves, na face e nos membros, fractura do baço e um estado psicológico debilitadíssimo, com uma auto-estima estrangulada. Concordou em apresentar queixa. Passou a viver com uma amiga. Sempre longe da alçada do marido, apesar das ameaças. Seguiu-se o julgamento e o divórcio litigioso, convolado em mútuo consentimento porque Ana, apesar da brutalidade, desculpou até ao último minuto as agressões, retirando a queixa crime, atribuindo-as ao efeito do álcool e não ao carácter perverso do cônjuge. No último dia, na última audiência, Ana partiu com um sorriso no rosto porque o ex-marido lhe tinha trazido um enorme ramo de rosas para festejar o divórcio. Ficaram amigos. Ao olhar para o ramo engalanado, não pude deixar de pensar se cada uma das rosas, não representaria um pedido de desculpas pelos murros, os pontapés e as bofetadas de que Ana foi alvo durante todo o casamento. Olhando para o ramo, concluí que o número era insuficiente.
imagem : Pablo Picasso - Blue Nude - 1902 

1 comentário:

Teka disse...

Um texto que senti dentro de mim. Belo de tão assustador.
Penso no nosso reencontro e na forma como vivemos as vidas dos outros de uma forma tão semelhante.
Partilhamos histórias tão intensas no nosso dia-a-dia que a necessidade de "manifestos surrealistas" é urgente no equilíbrio da nossa existência.
Espreita:

http://apontamentossentidos.blogspot.com/2008/03/dia-do-pai_19.html

http://apontamentossentidos.blogspot.com/2008/03/francisca.html

Foi bom reencontrar-te!
Nada é por acaso...
Teka