14.9.09

O Renascimento de Vénus

O Nascimento de Vénus - Sandro Botticelli - 1483
Foi com alguma perplexidade que li a notícia que dava conta de uma convocatória efectuada pelo Papa Bento XVI, para o próximo dia 21 de Novembro, à classe de artistas contemporâneos - arquitectos, músicos, pintores, escultores, escritores e cineastas -. Na génese desta reunião, estará o objectivo da Igreja incentivar as manifestações de arte espiritual e simbólica junto destes agentes da cultura. No último sínodo, realizado com mais de 200 cardeais, Bento XVI manifestou as suas preocupações por aquilo que apelida da crescente indiferença pela religião na Europa, constatando que países anteriormente ricos na fé e em vocações para o sacerdócio parecem estar em processo de abandono da sua identidade cristã. Pergunta-se: porque será? Volto aqui ao tema da Igreja, não porque tenha qualquer interesse especial no assunto, mas sim porque a cegueira que tomou conta da classe clerical e papal, atribuindo aos leigos a culpa da sua inércia e inaptidão em saber acompanhar os tempos modernos, causa-me alguma convulsão interna, sendo esta a forma mais branda que julgo conveniente para me expressar. Os tempos correm velozes e, certamente, não se compadecem com compassos de espera de sínodos, que ocorrem de três em três anos, ou com Concílios ecuménicos que, depois do de Trento no séc: XVI, pouco depois de Pedro Álvares Cabral ter descoberto o Brasil – parece que foi ontem -, ocorreram apenas mais dois: um, o Vaticano I, em meados do séc: XIX, enquanto Herculano escrevia “Portugaliae Monumenta Historica”e um outro, no séc: XX - Vaticano II -, em pleno período da Guerra Fria. Ora, com três Concílios em 500 anos, será difícil, para não dizer impossível, empreender reformas que suportem espiritualmente os leigos. Numa era tecnológica e de crescente respeito social relativamente às diferentes orientações de cada um, a igreja permanece arreigada a práticas, rituais e filosofias obsoletas, com as quais o cidadão comum cada vez menos se identifica. Por todo este descompasso a religiosidade de massas tem-se descaracterizado e transformado numa religiosidade individual. Cada vez mais tendemos a procurar dentro de nós o encontro entre o sagrado e o espiritual de que precisamos, rejeitando as emoções de massas com crescente esvaziamento de conteúdos e ausência de respostas relativamente às nossas necessidades espirituais. É por isso estranho, para não apelidar de outra forma, a aproximação que Bento XVI pretende fazer junto dos representantes das artes. É que, salvo erro, as manifestações culturais do cristianismo católico expandiram-se no período medieval através dos principais centros culturais existentes à data – os mosteiros -, constituindo as artes visuais uma das formas hábeis de transpor para a sociedade civil os valores do cristianismo, dada a iliteracia da população. Posteriormente, na fase do Renascimento, por influência da mitologia clássica, as artes tornaram-se mais laicas nas temáticas escolhidas sem, contudo, deixarem alguns pintores famosos, como Michaelangelo, Donatello, Botticelli ou Rafael, de elaborarem as suas obras nos termos específicos das encomendas efectuadas pelos notáveis patronos das artes que, em certa medida, muitos deles foram agentes do clero, quando não o próprio Papa. É o caso de Rafael e Michaelangelo que embelezaram as paredes do Vaticano, por encomenda e a título de prestação de serviço remunerada. Constato ainda, se a memória não me atraiçoa que, muitos destes pintores tiveram como patronos outros agentes não clericais, como os Médici e os Pitti, desenvolvendo obras fabulosas, como é o caso do “Nascimento de Vénus” de Botticelli, que só não foi para a fogueira da Inquisição, acusado de paganismo, porque o quadro se encontrava na famosa Villa Medicea di Castello, do não menos famoso Pierfrancesco de Médici que, julgo, terá mexido as suas influências para que a sua encomenda não fosse destruída, à imagem de tantos outros quadros de Botticelli. Posto isto, e para concluir, não estou a ver qualquer tipo de resultado prático da convocatória do Papa junto dos agentes das artes a menos que tenha orçamentado um saco azul – ou, melhor dito, dourado – e pretenda, à imagem dos bons anos renascentistas, tornar-se patrono dos actuais expoentes da arte contemporânea. Aí sim, acredito que, para variar, poderemos ter a felicidade de observar as novas alas do Vaticano embelezadas com expressões da mais profunda arte espiritual e simbólica revelada pelas correntes contemporâneas do minimalismo, da pop art e da arte conceitual. Vamos esperar para ver os resultados.

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