24.3.13

Milan Kundera - A Identidade

Lucas Cranach "the Elder" - 1546 - Fountain of Youth
Staatlich Museen - Berlin - Germany
A procura da uma nova identidade levou Chantal a reagir à passividade e ao conformismo da sua vida, tomando a atitude beauvoriana do “Deuxième Sexe”. Inconformada e com vontade de encontrar a sua nova versão melhorada, rejeita os paradigmas do machismo dominante, atemorizado pelas transformações e resguardado dentro das paliçadas dos seus tabus canonizados. Procurando mutações reveladoras de uma nova fase, Chantal reage, cortando as amarras que a sufocavam, acolhendo a “metáfora da rosa” imaginando-se rodeada de chamas “alegres, báquias, inebriadas, bravias”, apesar do pudor, dos preconceitos e do temor aos novos ventos de mudança. 

Milan Kundera, decalca com uma exactidão cirúrgica as imperceptíveis revoluções que se degladiam nos labirintos secretos da mente feminina, nessa dicotomia que Simone de Beauvoir chamou do “mito de ser mulher”, por oposição à “pura feminilidade biológica”. Pequenos palcos de guerra, secretos, onde se exorcizam fantasmas interiores, numa vida espiritual dialogada, que constitui para Kundera um tema privilegiado de observação, nessa dimensão onde ganha pertinência a interrogação de todas as coisas. Chegados à meia idade, e após um longo relacionamento, Chantal e Jean-Marc entram numa espiral de ansiedade lutando pela manutenção de um amplexo amoroso que evidencie a atracção mútua e o erotismo remanescente, desvalorizando as frustrações da monotonia e o eclodir dos dias lentos que se acomodam com o passar dos anos. 
É no momento em que se instalam todos os receios e incertezas que Kundera nos atira para o meio do casal tornando-nos espectadores passivos numa luta contra o desgaste do tempo.

Será este o momento de recorrer à Fonte da Juventude? Lucas Carnach assim o entendeu. A Lenda da Fonte da Juventude chega-nos desde Heródoto mas Carnach soube circunscrever o tema ao universo feminino. Com uma estátua inspiradora de Eros no centro, à fonte chegam várias mulheres que revelam um estado de exaustão e prostração marcados. A transformação dá-se logo após o miraculoso banho. Lavada a alma dos cansaços surge, no lado direito, um novo espaço, projectado à melhoria de uma existência individual. De relance, diria que parece quase perfeito.

4.3.13

Café en vogue

Edgar Degas - 1875/6 - L'Absinte
“L’Absinthe” seria, aparentemente, um quadro insusceptível de história, onde o alcoolismo e a passividade irracional dos figurantes exaspera o observador adepto do impressionismo tranquilizante dos grandes espaços. Mas, a história viria a convergir as suas polémicas sobre o tema, boémio, inebriante e decadente, quando Degas expôs, em 1893, a sua colecção na Grafton Gallery, em Londres. Alargando as margens do rio impressionista, Degas abriu portas a uma realidade incómoda que se escondia nos bastidores do recolhimento boémio, escancarando a tristeza submersa nas personagens cinzentas, retratando-as de olhares perdidos no infinito, ausência de força anímica e vidas que sufocam nos últimos redutos de águas estagnadas. A sociedade britânica, impoluta, e em contínua evolução da sua miopia, criticou duramente os temas de Degas, desvalorizando o interesse no close up que retratava a vida nocturna parisiense, e a ressaca de dois alcoólicos, despropositada aos bons costumes vitorianos. 
Lembrei-me deste episódio depois de ler uma série de livros dos quais fiquei com a impressão que o paradoxo das metamorfoses do tempo recai na ficção porque é uma realidade. Ao contrário da inércia das figuras derrotadas de Degas, encontrei sopros de vida numa série de personagens. Em comum, a procura de um sentido para a vida, a busca de uma identidade que transacciona com o tempo e as memórias, não em conflito, mas numa óptica de reconciliação com o passado, num presente cuja plenitude se pinta de cores vibrantes. “A Identidade” - Milan Kundera, "Viagem à India" - Gonçalo M. Tavares, “Ano Sabático” - João Tordo, “O Regresso do Hooligan” - Norman Manea, “O Feitiço da India” - Miguel Real, “Waldon ou a Vida nos Bosques" – Henry-David Thoreau, “Renascer” - Susan Sontag. Todos em comum criam urgências sobre a dialéctica entre a memória, o esquecimento e a revelação de um caminho.