3.10.11

“Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”

Hieronymus Bosch- Inferno - 1500


"No meio do caminho em nossa vida,
Eu me encontrei por uma selva escura
Porque a direita via era perdida.
Ah, só dizer o que era é cousa dura
Esta selva selvagem, aspra e forte,
Que de temor renova à mente a agrura!
Tão amarga é, que pouco mais é morte;
Mas, por tratar do bem que eu nela achei,
Direi mais cousas vistas de tal sorte.
Nem saberei dizer como é que entrei,
Tão grande era o meu sono no momento
Em que a via veraz abandonei.
Mas indo ao pé de um monte com assento
Lá onde terminava aquele val’
que o coração me enchera de tormento,
alto lhe vi nos ombros os cendal
vestido já dos raios do planeta
que leva à recta via cada qual."(...)
Dante Aliglieri in A Divina Comédia, Quetzal

Quando imagino o Inferno acredito que a entrada deverá estar emoldurada pela inscrição que Dante descreve na Divina Comédia: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”, ou seja, “Abandone toda a esperança quem aqui entrar”. A frase terá subjacente o catastrofismo e a visão atemorizadora do inferno medievalista, edificado sobre uma sociedade, maioritariamente iletrada, onde se exacerbava a fé em homiliadas sacerdotais e se exibia uma arte sacra que apontava o dedo persecutório ao cidadão que aspirava à salvação da alma. Jerusalém, local da Crucificação de Cristo, foi considerado, na cosmologia geocêntrica de Dante o centro do Universo, do hemisfério da Terra e a porta para o Inferno. Numa época, logo após as Cruzadas, onde a redenção da alma era transaccionada aos que dessem a vida pela Guerra Santa, compreende-se que Jerusalém fosse a entrada para o Inferno e que a odisseia de Dante constituí-se uma visão do percurso das almas até à redenção. Creio que em todos os infernos, sejam os ficcionados de Dostoievski ou os pessoais de Strindberg, haverá sempre lugar a um percurso que procurará ultrapassar as neuroses e os complexos pessoais, o assédio, a tortura, as perseguições e os exterminíos individuais, a crueldade, a prepotência e o totalitarismo social. Mas os contornos da fé cristã actual já não se compadecem com o espírito de sacrifício inicial, quando os homens sentiam o que havia de terrivelmente superlativo na fórmula de “Deus sacrificado” e se dispunham a delapidar a alma à imagem da santidade. Nos dias de hoje, Jerusalém já não é a única entrada para o Inferno. Com os seus nove círculos concêntricos as entradas disseminaram-se, como uma lepra medieval, assim como os infernos, dificultando as saídas para o Purgatório, sem alterar a direcção da gravidade da Terra. Para Dante e Vergílio, a solução foi mais fácil. Escalaram o pelo de Lúcifer e encontraram um buraco, que foi porta para a Eternidade.

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