12.3.11

Da renovação de Identidades

Li um conto de Affonso Romano de Sant’Anna, no Dia Internacional da Mulher, dedicado às metamorfoses, entendidas como imagens corpóreas de recontextualização da nossa  identidade.  Se é um facto, que há quem vaticine, que a nossa identidade possa renovar-se em cada década, como uma pele, libertando-se de amarras e evoluindo através da regeneração, pessoalmente entendo essa volatilidade de modo mais conservador e perene, acreditando, contudo, que há momentos determinantes na vida de uma mulher em que essa mudança, efectivamente, ocorre. Encontrei, neste texto, alguma identificação com as falácias metafísicas que evocam o alheamento temporário que cada um de nós, à sua maneira, procura para proceder a renovações, que nos lançam em novas volições e em direcção a novos rumos. Socorrendo-se de uma águia Sant’Anna diz-nos que é a única ave que chega a viver mais de 50 anos. Mas, para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa de tomar uma decisão séria e difícil. Ao olhar para dentro, repara  que as suas garras estão compridas e flexíveis perdendo a eficácia indispensável à sua sobrevivência. O seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, pesadas e envelhecidas, provocadas pela espessura das penas, apontam contra o peito, perturbando o alinhamento e a eficácia do voo. O que dantes era versátil e desenvolto, parece agora cheio de labirínticas dificuldades. O momento, transforma-se numa fase crucial na vida das águias, restando-lhes duas alternativas para sobreviver: nada fazer e morrer, ou enfrentar um doloroso processo de renovação que se desenrolará por 150 dias. No texto de Sant‘Anna a sua águia aceitou enfrentar o desafio. Ela voou para o alto de uma montanha e recolheu-se num ninho escarpado numa rocha, permanecendo no local em privação, abstendo-se da necessidade de voar e caçar. Iniciou, então, o seu processo de transformação, batendo com o bico violentamente contra a rocha até conseguir arrancá-lo. Sem possibilidade de se alimentar, a águia teve de aguardar até que o bico voltasse a crescer, facto decisivo para posteriormente conseguir arrancar as suas velhas garras calcinadas. Depois de arrancadas, aguardou, mais uma vez, que estas voltassem a crescer, para depois iniciar a difícil tarefa de arrancar, uma a uma, todas as suas velhas penas. Só após 5 meses decorridos, a águia conseguiu lançar-se novamente do penhasco para um novo voo de renovação. Mais leve, mais confiante e com probabilidades redobradas de sobreviver às intempéries da vida. O texto, em si, vale por mil ilustrações e sem dúvida que cativou a minha atenção pelo seu positivismo, afastando-se da perspectiva que nos é dada pela metamorfose kafkiana, sombria e irracional, derrotista e depressiva, onde o paradoxo consiste precisamente na falta de objectividade e na fragmentação da identidade sem expectativas, na degradação e na impotência em lidar com a nova dimensão individual. Sant’Anna soube exprimir, a meu ver, de forma absolutamente genial, aquilo que caracteriza, a metamorfose que ocorre com qualquer mulher madura, num jogo de espelhos revelador onde se produz a distância entre o seu corpo e o mundo, entre a superfície das coisas e a conquista da profundidade, entre a ostentação das “jóias” e a revelação de que elas estão subtilmente incorporadas no seu corpo, revelando-se naturalmente como se fossem prendas do tempo. Como Zaratustra é o momento de ultrapassar o “tu deves” para passar a dizer “eu quero” na medida em que a nova individualidade se torna criadora de uma dimensão reconciliadora com os novos desafios volitivos. E é aí, com a subtileza de um adágio, com gestos tranquilos de garça sobre um lago, que a mulher madura assume estar preparada para algo definitivo. Fotog: CRV

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