Perguntei-lhe se podíamos parar sempre que lhe fizesse sinal. Faisal acedeu, com um movimento assertivo. Quem concilia uma alma de fotógrafo amador com a de sonhador tem a pequeníssima faculdade de destabilizar, em poucos segundos, aquilo que deveria ser um passeio de carro tranquilo. Longe do catastrofismo de Barthes - que interpreta estes registos como fracções de vida perpetuamente moribundos dentro de uma máquina – a minha visão é superlativa em relação aos reflexos de um espelho interior que pretendo reproduzir. Momentos especiais que, de uma maneira ou de outra fazem-me saltar como uma mola, mesmo com o carro em andamento, de forma a agarrar um hiato de tempo com ambas as mãos que, por qualquer razão, não pode escapar. E, tudo se passa numa fracção de segundos decisivos. Se perdemos essa oportunidade o resultado é, aí sim, sempre trágico: ou o mundo acaba, ou o dia já não vale a pena, ou nada corre bem. Mas, agora não interessam as minhas convulsões fotográficas, nem a teoria fragmentada de Barthes, sobre a tarefa exclusivamente solitária do fotógrafo. Com um sol tímido de Dezembro, saímos cedo de Jerusalém. O nosso destino era o Bairro Palestiniano, situado numa colina, nas imediações da cidade. Faisal, o nosso motorista, apressou-se a explicar o que iríamos encontrar. A localização do bairro estaria numa qualquer relação geográfica que o posicionava nas coordenadas das antípodas do Inferno. Estranhos acontecimentos ocorriam por ali. Deuses Ctónicos habitavam o monte. Hécate, a feiticeira, realizava sacrifícios nas encruzilhadas. Gritos roucos de aves perdidas murmuravam palavras imperceptíveis que ecoavam em surdina. Em noites de Lua Nova, rondavam o bairro matilhas de cães assombrados sedentos de sangue. No ar, pairava a determinação de um povo para quem a atmosfera habitual foi sempre a catástrofe. Esperavam-me emoções fortes. Como se fosse possível não tropeçar a todo o tempo em emoções! Quem conhece as bordas dos sonhos sabe que eles exigem de nós um infatigável interesse solitário. Em sentido contrário, excursões de turistas, liderados por guias com bandeirolas ridículas, dirigiam-se para a paz podre do centro da cidade. Fiquei feliz por remar contra a maré. Sempre me seduziram as cruzadas próprias levadas até ao limite do exequível. E transgredir-me, é sempre um desafio apetecível. Iniciamos a subida. De ambos os lados da estrada, o cenário surgiu a cru e sem máscaras, num contraste desolador com a cidade. Terrenos abandonados, ervas daninhas até perder de vista, pedregulhos enegrecidos, ferros retorcidos, paredes tombadas numa tristeza amontoada em desespero dos que tudo perderam. Não estou familiarizada com a arquitectura dos Infernos mas julgo que a caracterização da paisagem talvez correspondesse ao piso – 9, onde a cinza se funde com a lava e nada resta para contar.
Senti a claustrofobia dos injustiçados. Saí do carro. Aproximei-me de um monte retorcido de escombros. Em tempos, julgo que foi, certamente, uma casa. Localizada num talhão de terreno em declive, era rodeada por um pequeno jardim com uma meia dúzia de árvores de fruto, que jaziam agora, secas e sem vida, dispostas à laia de cruzes de cemitério. Talvez uma família. Crianças. Brincadeiras no jardim. Risos. Qualquer coisa com sabor a felicidade efémera. Uma manhã, sem aviso prévio, a rua é bloqueada. Famílias são despejadas à força. Inexplicavelmente. Impunemente. Dá-se inicio à purga da habitação, como nos autos-de-fé medievais, com todo um coro impotente a assistir. Tudo se passa em poucas horas. Os militares, são indiferentes à suplica, aos pedidos, aos gritos, ao choro, ao desespero, aos desmaios, às agressões, à revolta, à prostração, à resignação, à determinação certa da reconstrução. Quando abandonam o bairro, os escombros ficam. Servem de exemplo. Os palestinianos, apesar de estarem instalados nas suas propriedades privadas, não têm direito a construir. Nada. Permanecem de pé as casas cujos donos têm capacidade económica para pagar uma elevadíssima taxa de construção, incomportável para 99% da população muçulmana. O bairro, apesar da administração palestiniana, está sob jurisdição israelita o que gera incompatibilidades insanáveis na sua gestão e uma negligência premeditada de modo a tornar insustentável a vivência no local. O propósito? Erradicar os palestinianos desta zona de Jerusalém para dar lugar à construção de urbanizações e colonatos judeus. Fomos até ao coração do bairro. No largo principal uma fortaleza destacava-se entre as casas tímidas que a circundavam. Paredes de betão reforçado, arame farpado, portões de ferro de uma altura desproporcionada. No telhado, um pau de bandeira gigantesco e uma bandeira israelita hasteada. A casa era muçulmana. De um dia para o outro a família foi despejada, sem explicações. Os seus haveres, as suas mobílias, a sua cama, são agora propriedade de colonos judeus realojados de um colonato de Hebrom. Este povo fez-me lembrar o castigo a que Zeus condenou “Prometeu”, durante 30.000 anos. Acorrentado no cimo do Monte Cáucaso, todos os dias uma águia deveria dilacerar-lhe o fígado. E todos os dias ele se regeneraria, num sofrimento cíclico. Subimos ao ponto mais alto do bairro, com vista panorâmica sobre Jerusalém. No horizonte, destacavam-se a Lua do Islão e a Cruz de Cristo, sobranceiras sobre o casario da Cidade Velha. Acreditei que Deus se esqueceu de abençoar este bairro proscrito. Não tenho feitio para ficar indiferente. Observo Jerusalém e comprometo-me a contar o que vi. Alguém sabe o que se está a passar? Alguém se apercebe? Alguém quer saber? A revolta faz-me desejar lançar um cavalo de Tróia em chamas sobre este país de Liliputianos. Um país que iniciou uma cruzada para aniquilar um povo que aqui vive há gerações milenares. Um país que perde o seu tempo a discutir, sobre a mesquinhez do espaço, a circundação de muros, o potencial bélico, a altura dos tacões dos sapatos, como partir um ovo, o rapto das ninfas ou a estipular o ponto ideal de circuncisão nos mais variados mini-pénis. Depois das leituras que fiz sobre o Holocausto, a ideia com que fico é que estou a presenciar réplicas do mesmo sismo, apenas com actores diferentes. É nestas alturas que a tentação toma conta de mim e rasteja como um verme debaixo da pele. Passeia-se pelo corpo e pelo espírito, adquirindo ares de Circe, com vontade de transformar os homens em porcos. Atrás de mim, o que me rodeava não tinha nada de panorâmico. Olho em volta e sinto que a capacidade de adaptação do ser humano, às circunstâncias mais adversas da vida, leva-o a construir bunkers protectores à sua volta e a lutar, de corpo e alma, por uma solução que se afaste da complacente resignação. Aqui existe o medo do amanhã, o desespero, uma sensação de abandono religioso, mas, também, a perseverância e a luta permanente. Há que não ceder às frustrações. Elas são descaradas tentações que se apresentam e devem ser de imediato afastadas, com base no princípio humano de que nada é infinito. A esperança de autonomia de um povo, ainda que sob uma incipiente forma embrionária, deverá ser acalentada como último reduto privado do ofício de viver. Quanto aos israelitas? FUCK THEM!
1948, data da formação do Estado de Israel , assinala a data da catástrofe palestiniana, denominada como "El Nakba". 750.00 palestinianos foram expulsos das suas casas e das suas propriedades. 500 aldeias foram destruídas. Fotogr: CRV©
Senti a claustrofobia dos injustiçados. Saí do carro. Aproximei-me de um monte retorcido de escombros. Em tempos, julgo que foi, certamente, uma casa. Localizada num talhão de terreno em declive, era rodeada por um pequeno jardim com uma meia dúzia de árvores de fruto, que jaziam agora, secas e sem vida, dispostas à laia de cruzes de cemitério. Talvez uma família. Crianças. Brincadeiras no jardim. Risos. Qualquer coisa com sabor a felicidade efémera. Uma manhã, sem aviso prévio, a rua é bloqueada. Famílias são despejadas à força. Inexplicavelmente. Impunemente. Dá-se inicio à purga da habitação, como nos autos-de-fé medievais, com todo um coro impotente a assistir. Tudo se passa em poucas horas. Os militares, são indiferentes à suplica, aos pedidos, aos gritos, ao choro, ao desespero, aos desmaios, às agressões, à revolta, à prostração, à resignação, à determinação certa da reconstrução. Quando abandonam o bairro, os escombros ficam. Servem de exemplo. Os palestinianos, apesar de estarem instalados nas suas propriedades privadas, não têm direito a construir. Nada. Permanecem de pé as casas cujos donos têm capacidade económica para pagar uma elevadíssima taxa de construção, incomportável para 99% da população muçulmana. O bairro, apesar da administração palestiniana, está sob jurisdição israelita o que gera incompatibilidades insanáveis na sua gestão e uma negligência premeditada de modo a tornar insustentável a vivência no local. O propósito? Erradicar os palestinianos desta zona de Jerusalém para dar lugar à construção de urbanizações e colonatos judeus. Fomos até ao coração do bairro. No largo principal uma fortaleza destacava-se entre as casas tímidas que a circundavam. Paredes de betão reforçado, arame farpado, portões de ferro de uma altura desproporcionada. No telhado, um pau de bandeira gigantesco e uma bandeira israelita hasteada. A casa era muçulmana. De um dia para o outro a família foi despejada, sem explicações. Os seus haveres, as suas mobílias, a sua cama, são agora propriedade de colonos judeus realojados de um colonato de Hebrom. Este povo fez-me lembrar o castigo a que Zeus condenou “Prometeu”, durante 30.000 anos. Acorrentado no cimo do Monte Cáucaso, todos os dias uma águia deveria dilacerar-lhe o fígado. E todos os dias ele se regeneraria, num sofrimento cíclico. Subimos ao ponto mais alto do bairro, com vista panorâmica sobre Jerusalém. No horizonte, destacavam-se a Lua do Islão e a Cruz de Cristo, sobranceiras sobre o casario da Cidade Velha. Acreditei que Deus se esqueceu de abençoar este bairro proscrito. Não tenho feitio para ficar indiferente. Observo Jerusalém e comprometo-me a contar o que vi. Alguém sabe o que se está a passar? Alguém se apercebe? Alguém quer saber? A revolta faz-me desejar lançar um cavalo de Tróia em chamas sobre este país de Liliputianos. Um país que iniciou uma cruzada para aniquilar um povo que aqui vive há gerações milenares. Um país que perde o seu tempo a discutir, sobre a mesquinhez do espaço, a circundação de muros, o potencial bélico, a altura dos tacões dos sapatos, como partir um ovo, o rapto das ninfas ou a estipular o ponto ideal de circuncisão nos mais variados mini-pénis. Depois das leituras que fiz sobre o Holocausto, a ideia com que fico é que estou a presenciar réplicas do mesmo sismo, apenas com actores diferentes. É nestas alturas que a tentação toma conta de mim e rasteja como um verme debaixo da pele. Passeia-se pelo corpo e pelo espírito, adquirindo ares de Circe, com vontade de transformar os homens em porcos. Atrás de mim, o que me rodeava não tinha nada de panorâmico. Olho em volta e sinto que a capacidade de adaptação do ser humano, às circunstâncias mais adversas da vida, leva-o a construir bunkers protectores à sua volta e a lutar, de corpo e alma, por uma solução que se afaste da complacente resignação. Aqui existe o medo do amanhã, o desespero, uma sensação de abandono religioso, mas, também, a perseverância e a luta permanente. Há que não ceder às frustrações. Elas são descaradas tentações que se apresentam e devem ser de imediato afastadas, com base no princípio humano de que nada é infinito. A esperança de autonomia de um povo, ainda que sob uma incipiente forma embrionária, deverá ser acalentada como último reduto privado do ofício de viver. Quanto aos israelitas? FUCK THEM!
1948, data da formação do Estado de Israel , assinala a data da catástrofe palestiniana, denominada como "El Nakba". 750.00 palestinianos foram expulsos das suas casas e das suas propriedades. 500 aldeias foram destruídas. Fotogr: CRV©
2 comentários:
Wow, TI... you almost leave me wordless... I very much enjoyed your allusion to the Gulliver's travels and from which end to open the egg... This is such a great example of how many political systems operate nowadays in many countries..
I see you are still under the big influence from your recent travel impressions.. Was it one of your most emotional travels, TI? Has any other country made such a huge impression on you? Or is it because this one was so much connected to the people's souls and emotions? I'm asking too many questions now... :)
TI, I'm also looking very very much to our London dream visit :P Have you had a chance to look through the shows I have sent to you? Sorry for rushing you - I'm just afraid a little that if we do not book in advance - the ticket prices would grow sky high...
I loved the song you mentioned on my blog - and I replied to your comment (too late - sorry!), I think I understand why you have tears in your eyes when you listen to it.. I think it was created by someone who had tears in his eyes in the first place... this is why it is so honest.
Hello Olga,
Yes, I guess that this was the most emotional trip till now and believe me, I’ve been in many countries around the world. Thanks to our Palestinian driver we went to some places where tourists usually don’t go. I became aware of the huge, enormous, outrage differences between Palestinians and Israelis, “supposedly” citizens of the same country. I was confronted with an enormous apartheid and what we see in the news doesn’t reflect the all picture. I also have a family explanation for these outrage feelings regarding human rights. My grandfather (father of my father) was a political prisoner of the former regime. He was exiled for many years in Timor, Cape Green, S. Tomé Island. He was also arrested in Lisbon many times just because of his ideas. He was not tortured because he was not a communist, otherwise he would have been. He had a strange death related with the secret police that my father never clearly understood. He was a gentleman and an officer at the army in Lisbon. I’ll tell you more about him in London. His life would give a romance full of secret meetings and things like that.
These posts about my travels work as a small feelings diary. I realize that my impressions written as soon as I arrive give me a “live” memory of what I felt. That’s why I’m insisting on the theme. And surely this trip was full of intense impressions and feelings. And you may ask whatever you like …
About London, why don’t you choose the show and surprise me? I trust on your instinct and option. I’m sure whatever you choose will be beautiful.
It’s interesting the association you’ve made. In fact honesty is one of my standards. Probably the most important in life.
Thanks so much for stepping by Olga. I’m really fortuned to have you as a friend. I’m looking so much forward to see you in London. What a great weekend we’ll have.
TI
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