27.11.17

O Temple Expiatori de Gaudí

Sentada no centro do "Temple Expiatori” rodeia-me uma floresta de árvores de pedra formada por troncos robustos com ramos petrius que se expandem, em folhagem harmoniosamente ramificada, até um tecto iluminado que me faz lembrar as estrelas do céu.
Sagrada Família - 2026
À minha esquerda o sol da tarde atravessa os vitrais de cores quentes, virados a sul, refractando a luz colorida e agigantando as imagens da vida de Cristo dando um colorido harmonioso ao chão da Basílica.
Olho em redor e ao contrário de outros templos de grandes dimensões, a arquitectura de Gaudi mudou o conceito gótico clássico dos grandes espaços. A forma e o pathos do sistema arquitectónico ganhou aqui novas geometrias e volumetrias, metamorfoseando a mística religiosa fria e descontínua, das grandes naves de pedra fria, que as grandes catedrais europeias geralmente nos sugerem.
Na decoração interior, foram excluídos os elementos carregados de mensagens apocalípticas. Ausentes estão os excertos da Bíblia que retratam a violência dos justos, o sacrifício místico dos santos, a redenção dos pecaminosos ou a destruição das cidades do Vale de Sidim. Em lugar da mística sacrificial encontramos um complexo arquitectónico que sugere uma combinação de elementos naturais ligados por uma relação simbólica de pertinência, que produz uma sensação agradável e de bem-estar.
Retiro o meu pequeno caderno e escrevo umas notas sobra as impressões que o espaço grandioso, impregnado das concepções geniais de Gaudi, me sugerem.
Por toda a Basílica, a luminosidade assume um protagonismo significativo, não só na cobertura da floresta densa, onde as abóbadas do tecto filtram a luz do dia, salientando os pormenores artísticos de folhagem no tecto, mas também nos subterrâneos e na cripta onde Gaudi fez questão que a luz chegasse de forma directa evitando qualquer iluminação artificial. Formada por sete capelas, dispostas em meio círculo é numa pequena capela da cripta, decorada com um baixo relevo de Josep Llimona, representativo da Sagrada Família na casa de Nazaré, que hoje se celebram as Eucaristias.

O inicio da construção
A ideia da construção de um templo para homenagear a Sagrada Família surgiu nos finais do séc. 19, no seio da Associação dos Devotos de São José, tendo o seu presidente, o livreiro Josep M. Bocabella, sido o seu mentor. Iniciada a procura de um local condigno com o culto, confrontou-se Bocabella com o valor exorbitante dos terrenos na cidade muralhada de Barcelona, acabando por encontrar uma quadrícula mais económica, nos arredores da cidade antiga, tendo por isso tido a possibilidade de adquirir um talhão de terreno de maiores dimensões do que aquele que inicialmente tinha idealizado. O local era modesto, rodeado de hortas, casas de camponeses e um novo bairro operário que se desenvolvia paralelamente à explosão da revolução industrial. A localização, fora da zona privilegiada de Barcelona, valeu-lhe durante muitos anos a denominação da "Catedral dos Pobres”. 
Corria o ano de 1880 e dois anos mais tarde iniciavam-se os trabalhos de construção do templo, com a colaboração do arquitecto Francisco del Villar que, após entrar em rota de colisão com Bocabella, seria substituído 1 ano mais tarde por Antoni Gaudí, um jovem arquitecto visionário que apresentou uma maqueta revolucionária, com uma exuberância e um significado que elevaria o projecto inicial do templo gótico a Basílica, competindo orgulhosamente com a catedral medieval de Santa Maria del Mar, instalada na zona antiga da cidade de Barcelona.
Fachada do Nascimento
São raras as catedrais que visitamos para as quais o nome dos arquitectos envolvidos torna a visita uma descoberta. Quando é que ao visitar a gótica Westminster Abbey nos recordamos dos seus arquitectos? Ou Jean de Chelles e Pierre de Montreuil, dois dos arquitectos da gótica Notre-Dame? Ou ainda a bizantina-gótica São Marcos? Todas estas catedrais são uma revelação maior da arte românica ou gótica mas o que nos conduz de facto à Sagrada Família é a exuberância das abstrações surpreendentes, convertidas em forma e volume, pela mão de Gaudí. A floresta de pedra, metamorfoseada como uma gruta, as pulsões transfiguradas nas formas que se afastam dos elementos tradicionais carregados e, particularmente, as inserções naturalistas dispostas num espaço arquitectónico com uma simbologia de união entre a terra e o céu.
Gaudí, para além de história, estudava a natureza e esse interesse encontra-se reflectido por toda a basílica onde penetrou de forma evidente o mundo morfológico natural transfigurado. Aquilo que poderia ter sido uma estrutura arquitectónica tradicional transformou-se numa arquitectura de elementos naturais ornamentais. 
Na fachada do Nascimento, a simbologia dos elementos utilizados traduzem, todos eles, mensagens relacionados com a mística cristã. Emoldurado por um “cipreste", sinónimo de “vida imortal e hospitalidade”, vemos poisado um bando de "pombas brancas” como uma alegoria às almas puras que aguardam a sua entrada no "paraíso”. Este é o umbral do templo que une a terra e a o céu.
Altar
As "plantas e os pássaros", que representam a "alegria do nascimento de Jesus", as "duas tartarugas”, a da esquerda com barbatanas, virada para o lado do mar e a da direita com patas porque se encontra virada para o monte Montjuïc que rodeia Barcelona. Igualmente as gárgulas, que nos habituamos a ver nas igrejas góticas, geralmente representadas com ornatos animalescos ou figuras monstruosas, numa advertência de vigilância contínua aos fiéis que o demónio nunca dorme e que é preciso estar alerta, não tiveram aqui lugar. Na Basílica, as gárgulas de chifres e as linguarudas foram substituídas por uma infinidade de animais e plantas que saltam vigorosamente da pedra inerte numa fertilidade da natureza que envolve harmoniosamente todo o espaço.
As dezoito torres que se elevam nos céus de Barcelona seguem critérios rigorosos de volumetria e altura, projectados por Gaudí, obedecendo à máxima de que “a obra do homem não deverá ultrapassar a de Deus” referindo-se à altura das torres da Basílica que não deveriam exceder a altura do monte Montjuïc que se encontra a montante de Barcelona. 
Gaudí construíu, involuntariamente, uma aura mística em seu redor potenciada pela sua personalidade reclusa e introvertida. Devoto confesso, via manifestações de Deus em todo o lado, na Basílica, nas torres, nas representações morfológicas na pedra patente no simbologismo da sua criatividade. Da nossa visita, apreendemos essa visão acutilante, genial. A transição do clássico frio e distante para o novo pathos natural. A mudança, das pulsões fatalistas para a harmonia espiritual das almas.

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