6.7.16

Praga - Parábolas na Karluv Most


CRV© Prague - Karluv Most, Castelo e Catedral de São Vito
Kafka, nasceu a 3 de Julho de 1883 em Praga. Autor de uma série de contos, recorreu, como nos diz João Barrento, “à forma breve da parábola como sistema de significação intensivo”. Os seus exercícios são a "busca de uma verdade sempre diferida, ou do enigma da verdade e do absurdo impenetrável das existências, marca daquela técnica alusiva e defectiva de que fala Barthes: "o sentimento do absurdo transfere o Juízo Final para cada dia vivido pelas personagens (…) em que o que é próprio do ser e dos muitos seres que povoam as parábolas de Kafka é o facto de eles serem ao mesmo tempo óbvios e inalcançaveis”. 

Num desses contos Kafka vê-se como uma ponte, suspenso sobre um abismo. Lá em baixo, marulhava um ribeiro negro, gelado, cheio de trutas. Com as pontas dos pés enterrados num dos lados do abismo e as mãos cravadas no outro, é subitamente interrompido na sua pose segura por alguém que se aproxima e lhe bate com uma bengala, envolvendo-lhe os cabelos e saltando-lhe para cima das costas. Com o peso, Kafka perde a sustentação entre os dois pontos do abismo e, no seu sonho, desmorona-se, despedaçando-se nas pedras aguçadas do leito do rio que sempre o observaram, tão pacíficas, no meio das águas em fúria. 

Encostada ao parapeito da Karluv Most, observo o movimento dos turistas que atravessam a ponte sobre o Moldava, em passo lento, deslocando-se entre a Malá Strana e a Cidade Velha. Coloco-me “de fora” e sinto-me como o espectador atento, criando conotações entre o desempenho dos traseundes, actores de parábolas representativas de uma outra realidade que se desenrola por detrás do palco da vida. 
E aí somos como nos diz Barthes, um Réquichot ou um Kafka, aquele "que só pinta o seu próprio corpo: não esse corpo exterior, que o pintor copia olhando de través, mas o seu corpo de dentro”. Procuram-se as leituras que obtusamente implodem, sendo sensíveis ao magma silencioso que escorre e se infiltra nos nossos sentidos dando-nos uma "leitura analógica axial, - João Barrento - característica do processo de produção de uma parábola". 

E eis que vindo do lado da Cidade Velha, entra na ponte um aglomerado de gente que rodeia um grupo de jovens trajados com roupas medievais. Os que lideravam empunhavam orgulhosamente porta estandartes com bandeiras coloridas, onduladas pelo vento, onde se viam dragões, castelos, escudos e flores de liz sob fundos bicolores encarnados, amarelos, verdes e azuis, representativos dos ducados e dos antigos feudos locais. Deslocaram-se até meio da ponte e aí, os da rectaguarda, organizaram-se dois a dois, armados com uma parnafenália de instrumentos de sopro e percussão. Dispuseram-se a poucos metros dos meus pensamentos, quando o som dos clarinetes e dos trombones tomaram conta do tempo iniciando uma dança em redor das bandeiras que demarcavam o eixo de intervenção.   Tocaram e rodopiaram, enquanto os dançarinos com guizos nos chapéus e nas pontas dos pés, vestidos com fatos de licra encarnada e azul, dançavam e ofereciam flores aos presentes. Lançaram-se foguetes e atearam-se pequenos fogos de artifício para inflamar o ar e iluminar a visão. Com o ressoar dos bombos a música tornou-se virulenta e ao contrário de apreciar as flores e o espectáculo medieval, os décibeis soltos pelas maçetas atiradas por braços fortes contra a pele curtida dos bombos, fez-me virar as costas à confusão. 

Debruçei-me no paredão da ponte e fiquei a observar o correr das águas, os barcos que tranquilamente navegavam ao longe e que pareciam flutuar, os pássaros que atravessavam o céu incólomes ao barulho, a colina por cima da Malá Strana com os jardins coloridos que envolviam o castelo e a Catedral de São Vito. Apanhei uma folha seca do chão e deitei-a ao rio. Deslizou empurrada pela corrente e seguiu o seu curso em direcção aos amontoados de folhas encalhadas numa pequena repressa que forçava caminho em direcção ao estuário da foz do Moldava. 

Em marcha lenta, a procissão de bandeiras e a música empenhada afastou-se em direcção à outra margem do rio seguindo o seu curso pela cidade. Voltaram as vozes dos que atravessavam a ponte, os ruídos da cidade ao longe, as poses para as fotografias, o toque supersticioso nas estátuas dos santos, o beijo nos pés do crucifixo, sorrisos e abraços cúmplices daqueles que experimentam a densidade dos espaços que se abrem numa viagem, descobrindo recantos de luz para descansar. 

Karluv Most
Agarrada ao guia de Praga lia sobre os segredos da construção da ponte. As superstições que envolveram o início dos trabalhos, a curiosidade do dia especificamente escolhido para a sua construção. Carlos IV escolheu o ano de 1357, no dia 9 de Julho, pelas 5.31hrs da madrugada para lançar a primeira pedra. E a escolha não foi por acaso. Se juntarmos todas as datas num só número, 135797531, verificamos que é possível lê-lo da mesma forma em ambas as direcções e que a soma dos digitos 1+3+5+7+9 = 25, fornece-nos os 25 arcos que a ponte de 515 metros tem. Desde a data da sua construção, a Karluv Most presenciou inúmeros acontecimentos relacionados com a astrologia, a superstição, a caça às bruxas, a perseguição de judeus, a execução de inocentes posteriormente beatificados, e a concretização de profecias beatas que amaldiçoaram o lugar onde santo Nepomukk foi atirado, por ordem do rei Venceslau, às águas geladas do rio. 

Na estrutura de um dos pilares da ponte, reza a lenda, que se encontra escondido um tesouro dos Templários, aí colocado na época em que a Ordem foi expulsa da cidade. Entre os objectos desse tesouro estaria um martelo de pedreiro utilizado na construção da Torre de Babel. 

Com a banda ao longe, abafada pelos ruídos da cidade, voltei ao meu caderno de notas, como uma espectadora atenta ao mar inesgotável de planos e enquadramentos que se desenrolavam no palco da vida que corriam lentamente em frente aos meus olhos.

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