30.3.15

As muitas vozes de Herberto Hélder

Herberto Hélder
É no momento em que se perdem as referências que o náufrago, enfermo de uma debilidade crónica, procura no caos imediato instrumentos substitutos. A escrita e a literatura surgem como uma catarse, ganhando espaço físico e intelectual próprio, sem qualquer intencionalidade ou rumo, para além do refúgio e do conforto que proporciona a criação de uma realidade que se vai metamorfoseando como uma segunda pele que adere harmoniosamente ao nosso corpo. Por essa altura descobri Herberto Hélder. Talvez porque tivesse o mesmo nome do meu pai e a sua poesia fosse um grito no caos, contos sublimados que encaixavam na perfeição no meu imaginário surrealista, ponto de partida para o espanto necessário de quem subitamente tinha ficado soterrada na espuma dos dias. A poesia de Herberto Hélder, decalcada das experiências triviais da vida, tinha na leitura surreal e abstrata um contorno cinematográfico inevitável que se encaixava na perfeição num palco que crescia proporcionalmente ao meu interesse pela poesia. “Vi que havia em mim um pensamento/ inocente, uma pedra/ quando se entra na noite pelo lado onde/ há menos gente. / Ou era um sino de um futuro/ maior silêncio, tão/ grande silêncio para se habitar só em gestos.” Pouco sabia da sua biografia e o deslumbramento da sua privacidade cativava-me. Identificava-me com o mito simples, obscuro, com a pose desinteressada das movimentações subterrâneas dos louros e dos reconhecimentos áureos, cultivando o isolamento e o repúdio pelos holofotes dos meios de comunicação. No momento do refúgio, identificamo-nos com a estirpe de homens que preferem as portas dos fundos, sem palcos, brechas ou aclamações virulentas que, no fim, duram poucos minutos. Os mitos, crescem na obscuridade, na “escrita suprema de imaginar por música/ as coisas: loiças, comidas, roupas./ Num inebriamento de beleza composta em número” por isso o considerei uma referência, um pai literário, substituto imaginário daquele que subitamente me faltou. Transformar o mundo do ilhéu em qualquer cosa mia, lançou-me não só pelos traços próprios ecléticos rebuscados como pelos trovões do encantamento místico das personalidades que nos deslumbram e se atravessam no nosso destino.

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