9.11.14

O que SEI dos HOMENZINHOS

Era um daqueles lugares em que se passava para o outro lado. Não pelo tronco oco de uma árvore mas através de uma greta na parede, de um buraco na base de uma gaveta, ou no interstício manhoso do parquet da sala que deixava antever uma fenda. O outro território tinha uma dimensão que se assemelhava ao desdobramento mental daquela parte onírica de nós mesmos. A entrada, secreta, acabou por ser um buraco no fundo de uma gaveta, com uma gravata agrafada, por onde se podia deslizar até outro buraco que servia de passagem para o mundo onírico das experiências. Aí, era permitido realizar todos os actos que a consciência humana reprovava, explorar arrebatamentos de euforia física e mental inesquecíveis, cometer todos os crimes sádicos reprováveis à luz do homem médio moral, extasiar-se com o prazer extremo dos vícios lúdicos impolutos da vida. Tudo, numa versão diminuta da consciência onde a preocupação ética aparecia diluída numa luta totalmente desprovida de sentimentos, fumando Camel sem pudor, tendo como motor impulsionador dos actos, os instintos básicos da própria sobrevivência narcisista.

Este recanto do mundo era habitado por pequenos homenzinhos, todos idênticos, de fato cinzento, camisa branca, gravata escura e chapéu de aba ao lado, como os actores de cinema dos anos 50 e 60. Actuavam em cumplicidade com o narrador, invadindo a sua privacidade com despudor, personificando as luxúrias e os desejos que a cobardia sempre haviam recalcado no fundo da consciência, quando os afloramentos surgiam para dar luz às suas fantasias. Dotados de um quadro secundário de narcisismo freudiano, os pequenos homenzinhos entendiam as pessoas não como um fim em si próprias mas como um meio ao serviço dos fins egoístas e narcisistas de si mesmos. Por isso, não mediam a harmonia, caindo fora dos ritmos habituais da tranquilidade, entretendo-se "com qualquer coisa", mesmo que isso significasse metamorfosear o narrador num desorientado insecto kafkiano que no lugar dos braços tinha apêndices, "enfiando-se na cama como uma barata se enfia numa greta" deslocada. 

Envolvido num mundo fechado, e com uma réplica que o faz experimentar ver o mundo através dos seus olhos, a vida do narrador depressa se transforma num pesadelo, com uma súbita combinação de álcool, sexo, nicotina e incitamentos para matar percorrendo caminhos entre escombros e ervas daninhas "com um efeito semelhante ao da câmara escondida de cinema que tinha a capacidade de desfrutar de tudo aquilo que a vida lhe oferecia", observando tudo com uma enorme estranheza.

Fazendo inevitavelmente recordar o mundo de Alice, os homenzinhos de Lilliput e a reclusão Kafkiana de Gregor Samsa, "O que sei dos Homenzinhos" de Juan José Millás é um livro que nos reporta à fronteira ténue entre o real e o imaginário, entre a verdade e a ficção, entre o medo dos sonhos e a coragem de enaltecer aquilo que é realmente importante na vida. "O que sei dos Homenzinhos", a verdade que ocorreu, num mundo paralelo, com silêncios telepáticos, mesmo, mesmo, aqui ao lado.

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